LUTO

Na Baixada Fluminense, mães transformam dor da perda em luta: “Nossos mortos têm voz”

Região registra 60% dos desaparecimentos no RJ; rede reúne mais de 250 mães que perderam filhos pelas mãos do Estado

Carol Brandão / Voz da Baixada
Carol Brandão / Voz da Baixada
Familiares de Emily e Rebecca, em frente ao mural que homenageia as duas meninas da Baixada, mortas em frente de casa

Brasil de Fato – Apesar da dor que percorre o mês de maio sem a presença dos filhos, as mães da Baixada Fluminense ainda acreditam na Justiça. Na região, que soma 60% dos casos de desaparecimentos no Estado do Rio de Janeiro, o caminho tem sido transformar o luto em luta.

“Juntas somos mais fortes, falo para todas as mães. Não desistam. Nossos mortos têm voz. Essa é a minha palavra que eu deixo para todas as mães”, aconselha Elizabeth Santos da Silva, que após percorrer hospitais e unidades do Instituto Médico Legal (IML) da região encontrou o corpo de seu filho Carlos Henrique, de 17 anos, quinze dias após seu desaparecimento, em 13 de julho de 2020.

A dor vivenciada por Elizabeth é hoje denunciada pela Rede de Mães e Familiares Vítimas da Violência do Estado na Baixada Fluminense, da qual faz parte, e que alcança cerca de 250 mães da baixada. “O luto nosso é eterno. Nós ainda estamos de pé, com todo o sofrimento, ajudando as outras mães, porque o único alívio no nosso coração é ajudando as outras mães.”

De acordo com a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), a cada mês são dez registros de desaparecimentos na Baixada Fluminense. Em 2020, segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, um a cada quatro casos no Estado ocorreu na região.


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Os três garotos de Belford Roxo

O episódio mais recente, o sumiço dos três meninos de Belford Roxo, ultrapassa 100 dias sem respostas quanto ao paradeiro das crianças. No dia 27 de dezembro de 2020, Fernando Henrique, de 11 anos, Alexandre da Silva, de 10, e Lucas Matheus, de oito, saíram para jogar bola e nunca mais voltaram para casa.

A falta de resolução atormenta as famílias e revolta as entidades que atuam nas comunidades da Baixada. “O sistema funciona quando é claro, quando é escuro ele não funciona. Ficou aí, menos de um mês solucionou o caso do menino Henry. Está errado? Não, está certo. A gente só está exigindo que seja com a gente do mesmo jeito”, aponta Monica Cunha, da comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

A comparação de Mônica tem base nas evidências. Enquanto a investigação sobre o desaparecimento das três crianças só ocorreu 100 dias após o registro por parte da família, a força tarefa para apurar a morte do menino Henry Borel foi anunciada pela Polícia Civil 26 dias após a execução.

Ela destaca que a busca pelas crianças deveria ter sido tratada como prioridade de caráter emergencial do Estado e que a omissão e atraso nas investigações infringiu a Lei 13.812, de 2019, que instituiu a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.

Hoje, a localização das crianças em câmeras de seguranças no dia do caso representa a pista mais contundente sobre o desaparecimento. As imagens dos garotos foram encontradas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro, apesar de antes estarem nas mãos da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense (DHBF).

“O Ministério Público vai olhar esses vídeos e ver os meninos passeando. E como a delegacia não viu? Pelo amor de Deus. Então são erros bizarros. E aí são erros sem querer? Não. Não existe sem querer para preto, pobre e favelado, existe uma política genocida”, aponta Cunha, que fundou o Movimento Moleque, em 2013, para lutar por direitos aos jovens infratores.

Seu filho, Rafael da Silva Cunha, foi morto pela Polícia Civil em dezembro de 2006, no entorno da favela do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio de Janeiro, palco da chacina que vitimou 29 pessoas na última quinta-feira (6).

“Ser humano matável”

A professora Nívia Raposo conta que a criação da rede de mães da Baixada está associada a luta de familiares por justiça após outro massacre, a Chacina da Baixada, que completa 16 anos em 2021. Na ocasião, 29 pessoas foram mortas por policiais militares nas ruas de Queimados e Nova Iguaçu.

Raposo viu o filho Rodrigo Tavares, de 19 anos, ser morto na porta de casa, em 2015. O jovem iniciava carreira no exército e foi assassinado pela milícia, segundo a mãe. Ela destaca o processo de desumanização. “Eu já entendi todo o processo de culpabilizar o meu filho por ele ter sido morto. Então, desde o momento que a gente chega na delegacia, a gente já entende que o nosso filho, por ser um morador periférico e preto, ele não é vítima, ele já é visto como um ser humano matável”, aponta.

“Então, eu tenho uma grande preocupação em trabalhar com a memória, que é para poder não deixar cair no esquecimento. O que o estado quer é isso, quer arquivar os processos, porque assim ele sai impune novamente”, completa Nívia Raposo.

Emily e Rebecca, mortas em frente de casa

Já a dor e a luta de Renata Rodrigues dos Santos, 28 anos, são mais recentes. Sua única filha, Rebecca Beatriz, de 7 anos, foi morta ao lado da prima Emilly, de 4, no dia 4 de dezembro de 2020. As crianças foram baleadas quando brincavam na frente da casa. A Polícia Civil nega envolvimento nas mortes, mas diz seguir nas investigações.

“Está sendo bastante difícil, ainda mais neste mês. Dia 4 agora, de maio, fez 5 meses, e dia 9 de maio é meu aniversário, dia das mães, entendeu? Eu não tenho nem muito o que falar, porque já me dá vontade de chorar. É minha única filha, minha única menina que tiraram de mim. Vai ser o primeiro ano de muitos que eu vou passar sem ela”, descreve.

A pequena Rebecca, assim como o jovem Carlos Henrique, morreu em contexto de pandemia, quando a determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, já estava em vigor recomendando a suspensão das operações policiais durante a crise sanitária.

“Que todas as mães se abracem, porque é bem difícil para todas. Não sei como vai ser esse dia das mães, mas que seja bom para as mães que tenham os seus filhos. E para as mães, que perdemos os nossos, que a gente tente tirar forças”, completa.

Outro lado

Em nota, a DHBF, da Polícia Civil, afirmou ao Brasil de Fato que continua com as ações de inteligência buscando esclarecimento e o encontro dos três meninos desaparecidos em Belford Roxo.

Afirma também que Fernando, Alexandre e Lucas teriam saído de onde moram, na comunidade Castelar, para a Feira de Areia Branca, percurso de aproximadamente 2,7 Km, e que os diversos caminhos possíveis já foram percorridos.

A corporação completa afirmando que já fez mais de 80 diligências e buscas ao longo desses meses e que as imagens coletadas foram apresentadas às famílias.

A reportagem também entrou em contato com o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.

Texto de Pedro Stropasolas, com edição de Daniel Lamir


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