Saúde terceirizada

Em São Paulo, OSS descumprem metas na saúde, não são fiscalizadas e recebem cada vez mais

Gastos das Organizações Sociais de Saúde cresceram R$ 1,6 bilhão em 4 anos, mas elas seguem descumprindo metas na atenção à população em São Paulo

TVT/REPRODUÇÃO
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A UBS Vila Zatt, que também funciona como Assistência Médica Ambulatorial (AMA), foi terceirizada há anos

São Paulo – Vendidas como a grande solução para melhorar o atendimento à saúde e a administração dos recursos, as Organizações Sociais de Saúde (OSS) veem ampliando seu poder na cidade de São Paulo, mas sem melhorar o atendimento à população ou a gestão dos recursos públicos. Ano após ano, os recursos repassados às OSS aumentam significativamente, mesmo que elas não cumpram metas básicas, como quantidade de consultas realizadas por mês. Pelos critérios de avaliação do próprio governo do prefeito Bruno Covas (PSDB), as organizações parceiras na saúde prestam um atendimento insatisfatório na maioria dos quesitos.

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Em São Paulo, a gestão por OSS foi regulamentada em 2006. Desde então, todo tipo de serviço de saúde foi sendo repassada para a gestão dessas organizações, sob justificativa de promover agilidade na gestão, economia de recursos, facilidade na contratação de profissionais e melhor atendimento à população. Hoje, 67% dos serviços de saúde da capital são administrados por organizações sociais. Das 468 unidades básicas de saúde, 90% são geridas por terceirizadas. E o governo Covas pretende ampliar esses números.

Apesar disso, segundo a pesquisa Viver em São Paulo de 2019, realizada pela Rede Nossa São Paulo, 56% dos paulistanos consideram a saúde pública como ruim ou péssima. Parte dessa avaliação está relacionada com a má prestação de serviços pelas OSS. A RBA analisou os Relatórios de Metas de quatro organizações sociais dos anos de 2017, 2018 e 2019, que comprovam o descumprimento de metas de consultas de pediatria, ginecologia e clínica médica, além das consultas de Saúde da Família. Esses dados dizem respeito apenas à gestão de Unidades Básicas de Saúde (UBS).


Mesmo com problemas na gestão da saúde, orçamento das OSS só cresce. Tanto em relação aos anos anteriores, como no próprio ano, o que evidencia descontrole na gestão das terceirizadas


As metas são distribuídas da seguinte forma: de 100% a 85% de meta cumprida é considerado índice satisfatório; de 84,99% a 70%, insatisfatório; de 50% a 69,99%, crítico; e abaixo de 50%, alarmante. Apesar disso, recebem os repasses mensais completos, sem aplicação dos descontos devidos, conforme os contratos.

Os dados detalhados de 2020 não estão disponíveis, pois, devido à pandemia do novo coronavírus, todo o sistema de saúde teve sua atuação direcionada, o que impede a análise dessas estatísticas. Além disso, em uma ação bastante criticada, o governo Covas suspendeu a maioria das consultas não relacionadas à covid-19 que seriam realizadas na rede municipal de saúde básica no ano passado, embora queira manter as aulas presenciais, mesmo no pior momento da pandemia.


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Com isso, o número de consultas realizadas em 2020 foi reduzido em cerca de 8 milhões de atendimentos. Destas, 3,6 milhões de consultas deixaram de ser realizadas na atenção básica, 1,7 milhão na atenção especializada e 2,7 milhões de consultas de urgência e emergência. “Covas está gestando uma terceira onda, que será dos pacientes crônicos que tiveram seu cuidado a saúde reduzidos durante a pandemia”, afirma a vereadora Juliana Cardoso (PT).

Mesmo com tantos problemas na gestão da saúde em São Paulo, o orçamento das OSS só cresce. Tanto em relação aos anos anteriores, como no próprio ano, o que evidencia descontrole na gestão. Em 2017, o orçamento previsto foi R$ 2,7 bilhões, mas o executado foi R$ 3,6 bilhões (35,5% maior).

Já em 2018, a previsão de R$ 2,7 bilhões e gasto real de R$ 3,4 bilhões (26,9%). Em 2019, a diferença foi um pouco menor, de 13,2%, mas em 2020, apesar da suspensão de quase todas as consultas não relacionadas à covid-19, a diferença foi de 31,3%.

Dados do orçamento da Saude de São Paulo

Metas descumpridas na saúde em São Paulo

Um dos casos mais graves no descumprimento de metas é o da OSS Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). A organização teve cumprimento de metas insatisfatório para consultas de saúde da família (2017 e 2018), clínica geral (2017) e ginecologia (2018 e 2019). Recebeu grau crítico para consultas de ginecologia e pediatria, em 2017. E grau alarmante nas consultas de pediatria em 2019. Mesmo quando atinge o nível satisfatório, o cumprimento está sempre abaixo de 100%. No entanto, não constam dos termos de aditamento, nem das prestações de contas, o desconto de valores referentes a metas descumpridas.

A OSS iniciou o ano de 2019 recebendo R$ 12,4 milhões por mês para custeio. Em dezembro, subiu para R$ 15,6 milhões. Entre 2019 e 2020, o repasse total aumentou 78%, de R$ 345 milhões para R$ 615 milhões. O Iabas também foi responsável por administrar o Hospital de Campanha contra a covid-19. A OSS agora está proibida de renovar contratos com o poder público devido a investigações do Ministério Público.

Mesmo as consultas mais básicas, que em muitos casos substituem as de profissionais especializados, são descumpridas. As planilhas mostram descumprimento de consultas de médico da família, nos três anos analisados, pela OSS Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SDPM), que sozinha detém 30% dos serviços. Já a meta de consultas de ginecologia foi considerada crítica em 2017 e 2019, e insatisfatória em 2018, enquanto as de pediatria foram consideradas insatisfatórias em 2019. A única meta cumprida foi em clínica geral.


“Moro aqui desde 1984. O postinho é o mesmo daquela época. Hoje em dia, ele está sempre bem pintado, as paredes estão limpas. Mas médico que é bom, não tem não”


Apesar disso, os termos aditivos mostram que o governo Covas simplesmente ignorou o continuo descumprimento das metas. Os valores repassados se mantêm ou são aumentados ao longo dos meses. A organização recebeu R$ 18,6 milhões em julho de 2019, mas descumpriu as metas de consultas de ginecologia, pediatria e saúde da família. Mesmo assim, recebeu R$ 18,6 milhões em agosto e R$ 19,1 milhões em setembro.

Já a OSS Casa de Saúde Santa Marcelina, que atua na zona leste da cidade, só conseguiu cumprir as metas em nível satisfatório nas consultas de clínica geral e nas consultas de Saúde da Família do ano passado. Todo o restante – consultas de ginecologia, pediatria e Saúde da Família (2017 e 2018) – ficou em nível insatisfatório segundo as planilhas analisadas pela RBA.

Sem médicos especialistas

Na zona sul da cidade, a situação não é diferente. Mas, além de descumprir as metas de atendimento, a OSS Associação Saúde da Família tem uma peculiaridade. Nas 17 UBS sob sua gestão, a população não é atendida por profissionais especialistas, só por médicos de Saúde da Família. Ou seja, não há, por exemplo, ginecologistas ou pediatras no atendimento de rotina. Apenas se o médico da família avaliar que há necessidade, o paciente é encaminhado a uma unidade com especialista ou atendimento emergencial. Mesmo assim, a organização descumpriu a meta de realização de consultas no ano passado. Mas recebeu os repasses normalmente.


“É urgente que esse processo todo de terceirização seja reavaliado, e se de fato isso traz benefício ao atendimento de saúde na cidade de São Paulo”


“Moro aqui desde 1984. O postinho é o mesmo daquela época. Hoje em dia, ele está sempre bem pintado, as paredes estão limpas. Mas médico que é bom, não tem não. Você precisa de algum especialista, precisa passar com o médico da família, para só depois ter consulta para o seu problema mesmo. Até com as crianças é assim, não tem pediatra, não tem ginecologista”, relatou a aposentada Marina Camilo da Silva, moradora do Jardim Myrna, no extremo sul da cidade, e que usa a UBS de mesmo nome.

A gravidade dessa situação poderia ainda se ampliar. No ano passado, o Tribunal de Contas do Município (TCM) de São Paulo suspendeu um edital de chamamento público bastante vantajoso para as OSS interessadas em assumir UBS no distrito de Perus, na região noroeste da cidade. O texto publicado pelo governo Covas possibilitava que a gestora descumprisse até 15% das metas estipuladas sem sofrer descontos em sua remuneração. Além disso, não definia as equipes de saúde mínimas necessária para cada unidade, além de trazer uma estimativa orçamentária fora dos custos de mercado.

O presidente do Conselho Municipal da Saúde, Leandro Valquer, considera a situação muito preocupante, porque demonstra que os recursos acabam sendo desperdiçados, quando poderiam ser plenamente utilizados em benefício da saúde da população. “É preciso cobrar que a administração municipal esteja atenta a isso e que faça o desconto necessário quando não forem cumpridas as metas. Mas o que nos interessa é que essas metas sejam cumpridas e a população, atendida. É urgente que esse processo todo de terceirização seja reavaliado, para pensar se, de fato, isso traz um benefício ao atendimento de saúde na cidade de São Paulo”, afirmou.


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