Herança

Bolsonaro não é causa, é efeito. Ele é sintoma do que os brasileiros são, diz Lilia Schwarcz

No programa Giro Nordeste, na TVT, historiadora, antropóloga e escritora, destaca que passado de escravidão do Brasil resultou em uma sociedade violenta e hierárquica

Rovena Rosa/Arquivo EBC
Rovena Rosa/Arquivo EBC

São Paulo – A ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República tem raízes no passado escravocrata do Brasil, segundo aponta Lilia Schwarcz, autora do livro Enciclopédia Negra. Para a historiadora, antropóloga e escritora, um grupo de brasileiros sentiu-se à vontade para mostrar uma face autoritária e segregadora e, com isso, levou a sociedade a uma involução na cidadania, com consequente desrespeito à democracia. “Jair Bolsonaro não é causa, é efeito. Ele é sintoma do que os brasileiros são. Como que nós pudemos, durante 400 anos, aceitar o sistema escravocata? Como é que nós tornamos invisível, silencioso, o racismo brasileiro?”, comentou, durante participação no programa Giro Nordeste, da TVE, no dia 1º de abril e reapresentado pela TVT na noite de sexta-feira (9).

Ela lembra que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. “Nós fizemos depois dos ‘lanterninhas’, Estados Unidos, Porto Rico e Cuba”. Além disso, quando o fez, foi por meio de “uma lei vergonhosa, de uma linha: ‘não há mais escravos no Brasil’. Não teve nenhuma política de inclusão. A Primeira República prometeu inclusão, mas entregou exclusão social”.

Além disso, o país foi, de longe, o que mais recebeu população africana. “Dos 12 milhões que chegaram nas Américas, 4,8 chegaram ao Brasil e nós sabemos que tivemos escravizados em todas as regiões do Estado”. A consequência foi uma sociedade com uma linguagem violenta. “Os brasileiros mostraram a sua face”, resumiu.

Ressentimentos

Lilia Schwarcz continua o raciocínio explicando que, com o final da ditadura, essa faceta da sociedade ficou adormecida, mas após o golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, em 2016, “uma parte da população que andava ressentida durante 30 anos de democracia, acreditando que tinha perdido direitos para novos agentes sociais que tinham ganhado espaço desde a Constituição de 88 – me refiro às mulheres, à população LGBTQI+, ao quilombolas, aos indígenas. Essa população ressentida achou espaço pra se manifestar”, completou.

Baseando-se em pesquisas, revela que intolerância de raça, religião, gênero, de região e de geração, cresceu 80% de 2017 para 2020. “Ou seja, o brasileiro que adorava se fazer representar como pacifista, de repente mudou de imagem. O Brasil é campeão em feminicídio, mas só em 2015 o termo entrou no nosso vocabulário”.

Luta pela liberdade

Para combater essa intolerância, um dos caminhos são políticas como a de cotas, implantada e desenvolvida no Brasil durante os governos Lula e Dilma. “O Brasil vai precisar desigualar para igualar. E também porque quanto mais diverso nós formos, melhor nós seremos”.

Nesse contexto é que entra o livro recém lançado pela antropóloga, cuja intenção, explica, foi ampliar a visibilidade das biografias de mais de 550 personalidades negras. “A Enciclopédia Negra é sobre a luta pela liberdade. Tem histórias maravilhosas, de mães grávidas que fugiram pra que o filho não nascesse no cativeiro. Tem a história da Rosa, no Rio Grande do Sul. Ela cruza a fronteira com o Uruguai e diz: ‘vou cruzar a fronteira da liberdade’. Tem histórias do Norte, em que eles (escravos) vão para as Guianas, fazem trocas, porque querem descobrir o que foram as rebeliões nas Guianas para trazer pro Brasil”.

“A nossa história ainda é profundamente colonial, branca e masculina. Os nossos grandes heróis são sempre homens. Eu sempre brinco que a princesa Isabel entra porque é filha de Pedro II, não porque é a Princesa Isabel. Não é possível tratar isso com menos importância. Vamos ampliar a lista de protagonistas da nossa historiografia. Não é preciso tirar ninguém”, seguiu.

Golpes e contragolpes

Voltando a avaliar o significado de Jair Bolsonaro no poder, Lilia Schwarcz vê que desde que ele assumiu, o país vive uma erosão sistemática da democracia. “Ele não precisa dar o golpe, ele é o golpe. Nós vivemos, desde o começo do governo, um estado de golpe. Vivemos cotidianamente uma série de golpes”. Trata-se de uma característica histórica do país, segundo ela mas, neste caso, sem a necessidade da chamada quartelada. “A nossa história da República é feita de golpes e contragolpes. A República foi um golpe civil militar. Logo os civis tomaram o golpe de Deodoro (Deodoro da Fonseca). E Deodoro logo tomou o golpe de Floriano (Floriano Peixoto). E esses golpes, em geral, são dados por políticos, que fazem concessão para se manter no poder”.

Involução

“Nós precisamos de um Brasil mais republicano, mais pela res publica (coisa pública, em latim). A cidadania é uma espécie de franquia da democracia e nós precisamos também de muito mais cidadania. Não só dos políticos, mas da sociedade civil brasileira”, diz.

Lilia Schwarcz, porém, enxerga que estamos caminhando no sentido oposto e, para isso, compara a atitude da sociedade em relação à pandemia da covid-19 com a da gripe espanhola, há cerca de 100 anos. “Nós involuímos. Em 1918 as igrejas fecharam (para cultos) e abriram para formar hospitais de campanha. Clubes de elite fecharam e também abriram pra formar hospitais de campanha. Agora estamos vivendo um momento de muito pouca solidariedade, empatia e coletividade”.

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