À própria sorte

Em São Paulo, fase roxa tem ônibus, metrô e trens lotados e pouco isolamento social

Trabalhadores se revoltam com o descaso e registram em imagens aglomerações forçadas no transporte público, apesar da capital estar na fase emergencial (roxa) da quarentena

Ariel Castro Alves
Ariel Castro Alves
Com a reabertura total do comércio e dos serviços, transporte coletivo volta a ficar totalmente lotado, colocando milhões de pessoas em risco

São Paulo – Todo o estado de São Paulo entrou na fase emergencial (roxa) da quarentena contra a covid-19 nesta segunda-feira (15), após duas semanas de fase vermelha. O objetivo é reduzir a circulação de pessoas, as aglomerações e, consequentemente, a transmissão da covid-19. No entanto, inúmeros são os relatos de ônibus, metrô e trens lotados, tanto nas semanas anteriores, quanto nos dois primeiros dias da nova fase. Sair das periferias de São Paulo para trabalhar nunca foi uma coisa simples. Várias conduções, ônibus, trens e metrô lotados, horas dentro dos veículos. A pandemia do novo coronavírus mudou muita coisa na vida dos paulistanos. Mas o transporte coletivo segue problemático. E lotado.

“Não tem dia que não estejam lotados. Saio do Grajaú (zona sul) e uso lotação, trem e dois ônibus para chegar ao trabalho, em Perdizes (zona oeste). É impossível manter qualquer distanciamento e a insegurança e o medo de me contaminar são permanentes”, explicou a assistente administrativa Ingrid Novais. Em suas mais de duas horas de viagem, Ingrid ainda tem de conviver com todo tipo de descuido dentro do transporte coletivo, bem como nas filas de embarque e nos momentos de desembarque, sobretudo no trem da Linha 9-Esmeralda (Grajaú-Osasco), da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), que é o local de maior lotação.

“Praticamente todos os dias preciso pedir para alguém colocar a máscara, porque não ficam sem só na rua, é no trem, no ônibus, perua, metrô”, destacou ela, que teme principalmente levar o vírus para casa e contaminar a filha, Elis, de apenas 6 meses. Ingrid conseguiu ficar praticamente um ano em isolamento social, que coincidiu com a gestação e primeiros meses da filha. Mas teve de voltar ao trabalho presencial esse ano.


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Saída de passageiros na Estação Jurubatuba, da CPTM, registrada por Ingrid Novais

A situação não é diferente para a auxiliar de serviços gerais Ieda Pereira Leal, moradora do Jardim Elisa Maria, na zona norte da capital paulista. “Totalmente lotado. Essa é a situação dos ônibus que eu pego todos os dias. Saio de casa cinco horas da manhã, quando eu entro no ônibus, passando na catraca, dá até arrepio. Eu peço proteção a Deus, para me proteger. E não tem como você manter distanciamento, porque é um de um lado, outro do outro”, relatou ela, que trabalha na região de Santana.

Embora trabalhe em uma Unidade Básica de Saúde, Ieda usava apenas máscaras de pano caseiras no deslocamento casa-trabalho. Agora utiliza máscaras N95, doadas por colegas de trabalho que viram o risco na exposição diária dela. Na volta, para reduzir o risco, a trabalhadora chega a ficar uma hora esperando um ônibus mais vazio. Ela vive com uma filha e dois netos e tem muito medo de pegar e contaminar as crianças.

Inação de Doria na fase emergencial (roxa)

A fase emergencial (roxa) da quarentena foi decretada devido ao colapso na rede de saúde de São Paulo. A capital paulista e a Grande São Paulo atingiram 90% de ocupação das unidades de terapia intensiva ontem (16). Em todo o estado, 12 das 17 regiões de saúde estão com mais de 80% dos leitos de UTI ocupados, situação nunca antes vista na pandemia. São 24.992 pessoas internadas, sendo 10.756 pacientes em UTI e 14.236 em enfermaria. São Paulo registrou 679 mortes por covid-19 ontem, o maior número até agora.

Lotados e com pouca ventilação, os transportes coletivos se tornam um local de alto risco para a transmissão do novo coronavírus, na avaliação de especialistas. Mas têm ficado ausentes das análises do governo de João Doria (PSDB) sobre o aumento de casos, internações e mortes por covid-19 em São Paulo. Baladas clandestinas e festas têm sido apontadas como o principal problema. Mesmo com a passagem à fase emergencial (roxa), o governo Doria apenas sugeriu às empresas que adotem horários alternativos de entrada de funcionários, para tentar reduzir a lotação dos transportes coletivos.

Situação da linha 971-R, as 5h30 da manhã da última segunda-feira, registrada por Ieda Leal

Outras medidas que chegaram a ser sugeridas, como determinar um limite de lotação dos veículos e a manutenção de 100% das frotas em todos os horários foram descartadas pelo governo Doria. Além disso, não está descartada a redução da oferta de ônibus, Metrô e trens se a demanda tiver queda significativa nos próximos dias.


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A também assistente administrativa Letícia Marinho considera que isso seria o mínimo. Ela não sentiu qualquer mudança na lotação do transporte nos últimos dias. “O governo acha que fechando o comércio tem de reduzir as frotas de ônibus, trem e Metrô. E que isso irá diminuir os casos e mais casos que podem, inclusive, serem contraídos dentro do próprio transporte público, que geralmente anda lotado acima do limite aceitável. Não tem distanciamento e não teve melhora nenhuma no transporte durante toda a pandemia”, criticou Letícia, que sai do Jardim Myrna, na zona sul, para o Paraíso, na região central de São Paulo.

Segundo a Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes, do governo Bruno Covas (PSDB), a frota do sistema de transportes está mantida em 93,34% nos bairros mais afastados do centro e em 88,25% em toda a cidade, mesmos níveis das semanas anteriores. Segundo a pasta, a demanda de passageiros estava em 61% na semana anterior ao retorno da Fase Vermelha (em 2 de março), em relação ao último dia útil antes da pandemia. Caiu para 52% na semana passada e para 46% nesta segunda-feira (15/3), primeiro dia de validade da fase emergencial (roxa).


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Apesar da queda registrada pela secretaria, o índice de isolamento social em São Paulo não registrou alteração significativa, indo de 41% na semana passada, para 42% hoje. Em todo o estado se manteve na mesma média que vem sendo registrada desde 14 de janeiro: 40%. O que indica que a maior parte dos trabalhadores segue se deslocando normalmente aos locais de trabalho. Para o presidente da CUT-SP, Douglas Izzo, os governos Doria e Covas ignoram a situação dos trabalhadores no planejamento das ações contra a covid-19. 

“As imagens dos transportes coletivos lotados nessa fase emergencial (roxa) estabelecida pelo governo do estado e no município de São Paulo demonstram que falta planejamento, que falta um acerto nas questões que envolvem o transporte de pessoas na capital e demais cidades. O transporte coletivo, com a sua lotação máxima, significa que os empresários estão retirando ônibus de circulação, reduzindo suas frotas, o que acaba resultando na superlotação, o que do ponto de vista do debate sanitário é muito ruim. Dessa forma o transporte coletivo se transforma em um vetor de transmissão da Covid-19”, afirmou Izzo.

O inquérito sorológico realizado pela prefeitura de São Paulo mostra que a proporção de pessoas infectadas que saíram de casa para trabalhar ou realizar outras atividades essenciais é menor em relação a quem sai para locais e atividades não essenciais, independente do meio de transporte ou da forma de deslocamento. No entanto, pesquisadores apontam que isso não torna os ônibus, trens e metrô lotados menos perigosos, sobretudo na fase emergencial (roxa) da quarentena.

Covid-19 no transporte coletivo

“Esses são espaços com alto risco de transmissão, sim, porque a transmissão acontece basicamente pelo ar. Uma pessoa infectada, está falando, respirando e emitindo partículas potencialmente contaminadas. Essas partículas vão se acumulando em um local fechado, mal ventilado, sem janela, como é o transporte público. E outra pessoa pode acabar inalando essas partículas. Então, é um ambiente perigoso, sim”, explicou Vitor Mori, pesquisador na Universidade de Vermont e membro do Observatório Covid-19BR.

A biomédica Mellanie Fontes Dutra, membro da Rede Análise Covid-19, avalia que, pelas imagens, mesmo com uso de máscara a proteção contra o novo coronavírus fica comprometida. “Uma situação como essa, onde tem pessoas em pé, umas na frente das outras, uma sentada e outra de pé do lado dela, é muito complicado. Porque tu não estás com distanciamento também, que é uma coisa que agrega bastante na proteção junto da máscara. A situação atual não condiz com superlotação de transporte público. E é dever dos municípios e dos gestores desenvolver ações para que as pessoas possam ter mais segurança nesses transportes também”, defendeu.

Entre as possibilidades para aumentar a segurança no uso do transporte coletivo, os pesquisadores destacam abrir o máximo possível as janelas do ônibus, quando houver, e usar máscaras bem ajustadas no rosto e de melhor qualidade, sobretudo as chamadas PFF2 e N95, que podem ser compradas na internet e lojas de equipamentos de proteção individual. Em ambientes fechados e aglomerados, as máscaras de pano têm sua capacidade de proteção reduzida, mas elas seguem úteis em áreas abertas ou com bem poucas pessoas.


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Além disso, deve-se evitar conversas dentro do ônibus, o que reduz a emissão de partículas que podem estar contaminadas. Mori mantém em suas redes sociais orientações e dicas de prevenção da covid-19 e do uso de máscaras. Mellanie e Mori também defendem que o poder público deve implementar políticas para evitar a superlotação do transporte coletivo e a oferta do maior número de veículos possível, sempre.

No entanto, apesar dos problemas na situação do transporte coletivo na fase emergencial (roxa) da quarentena, os pesquisadores consideram que não se pode justificar aglomerações em praias, bares ou festas por conta disso, como se tornou comum nas redes sociais.

“Não é aceitável essa comparação entre transporte coletivo e bar, lazer. Porque qualquer redução de circulação e de contatos que a gente possa promover, é benéfica. Eu acho que a gente tem que ir na direção de dizer que o transporte coletivo não pode estar assim. A gente precisa de políticas que aumentem a segurança no transporte. Cobrar que todos os ambientes sejam mais seguros para a população. Até porque em bares, restaurantes, as pessoas, geralmente, têm um contato prolongado, próximo, face a face e sem máscara. Isso aumenta muito os riscos. Já há estudos de rastreamento de contatos que mostram que bares e restaurantes estão associados a uma subida grande de novos casos”, explicou Mori.


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