Votorantim

Juíza dá liminar para reintegração de posse sem comunicar Defensoria

Juíza da 1ª Vara do Fórum de Votorantim concede liminar para retirar 110 famílias de ocupação. Defensoria pública consegue suspender a decisão em meio a ação dos policiais

Tiago Macambira
Tiago Macambira
Moradores ameaçados: juíza não seguiu a recomendação nº 90/2021 do Conselho Nacional de Justiça para que não ocorram reintegrações enquanto não houver conclusão das etapas do Plano de Imunização

São Paulo – Em plena pandemia, a juíza Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad, da 1ª Vara do Fórum de Votorantim, concedeu liminar para retirar 110 famílias da ocupação Teresa de Benguela, no bairro Capoavinha. Na quinta-feira (11), as famílias acordaram às 6h, com a movimentação de policiais militares que chegaram em um ônibus, mais Tropa de Choque e três máquinas para fazer cumprir a ação de reintegração de posse.

A ocupação Teresa de Benguela abriga as famílias divididas em casas construídas de madeira, distribuídas em seis ruas. Há aproximadamente 70 crianças no total. “Vocês têm 20 minutos para sair. Foi o que disseram. Mesmo vendo que tinha pessoas com deficiência e grávidas”, conta Simone Regis, de 33 anos.

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo conseguiu suspender a reintegração antes de as máquinas passarem por cima das casas. Mas, a ordem de suspensão chegou por volta das 13h. A defensoria apontou diversas irregularidades ao obter a suspensão e nulidade da liminar.

Com o agravamento da crise sanitária no Brasil, que completa um ano batendo recordes de casos por falta de vacinas, muitos trabalhadores perderam as oportunidades que tinham para sustentar a família e, sem renda, não puderam mais pagar aluguel. Em Votorantim (SP), três ocupações de áreas foram realizadas sob a coordenação da Frente Nacional de Luta Campo e Cidade (FNL), movimento que luta por políticas públicas para moradia digna e reforma agrária.

“Saí com as crianças e me ajoelhei”

Os moradores já tinham sido obrigados a arrancar, às pressas, os pertences de suas casas. “Eu sai com as crianças e me ajoelhei e comecei a rezar porque não temos para onde ir, se tivéssemos não estaríamos aqui. Um policial me falou que não adiantaria que a minha casa seria a primeira a ser destruída”, diz Luciana Siqueira, 38, que tem quatro filhos que dependem dela, um bebê de quatro meses, um de quatro anos, uma filha adolescente que sofre com epilepsia e um maior de idade com deficiência.

Assim como a maioria dos moradores da ocupação, Luciana foi atingida pela crise que se abateu no país e saiu com seu marido e filhos do Jardim São Lucas, em setembro do ano passado, onde pagava aluguel, para morar na única alternativa que lhe restava.

“Mas aqui todo mundo é unido. Um ajuda o outro. Aqui tem um coordenador em cada rua, temos reuniões”, explica Franciele de Jesus, que mora na ocupação há quatro meses. Ela saiu de São Paulo, onde morava num barraco próximo ao rodoanel com o sonho de poder ver as crianças terem mais dignidade e espaço para brincar.

Enquanto ela fala duas crianças pulam pequenas poças na rua de terra e inventam brincadeiras com um carrinho de plástico.

Omissão do poder público

Devido à ação de reintegração de posse iniciada às 6h as crianças, assim como todos, não tomaram café da manhã, nem puderam almoçar. “Eu cheguei a pedir para os policiais se eles poderiam repartir a marmita com as crianças, mas disseram que não. Fomos conseguir comer só depois das 22h”, lamenta Franciele.

Uma pessoa com deficiência passou mal e teve que ser socorrida.

Após a suspensão da ação, os moradores que tinham sido expulsos começaram a retornar, sob chuva e tiveram suas roupas e demais pertences molhados. Muita coisa se perdeu, inclusive as caixas de água que tiveram que ser esvaziadas na correria.

Defensoria conseguiu suspender a reintegração de posse, mas algumas moradias foram danificadas pela ação policial até a suspensão da liminar (Foto: Tiago Macambira)

Algumas casas sem telhado, noutras já tinham sido arrancadas as paredes. Mais uma vez, a solidariedade mobilizou e os que tinham as casas mais completas compartilharam com vizinhos.

O dirigente estadual da Frente Nacional de Luta (FNL) Odenil Gonçalves Leonel, conhecido por Dênis, explica que a ocupação Teresa de Benguela ocorreu por conta do despejo das famílias, em 5 de setembro de 2020, da área do Jardim São Lucas, também em Votorantim. “O poder público se omitiu de atender as famílias. Pesquisamos e vimos que esta área atual estava há vinte anos desocupada. Fizemos levantamento em cartório e não tinha matrícula. Ou seja, um imóvel que já era para ser desapropriado”.

Liminar com irregularidades

Apesar do imóvel não cumprir sua função social, a ação de reintegração de posse ocorreu por conta do pedido do aposentado Orlando Ribas, que consta como autor no processo.

“O senhor Orlando diz que o imóvel pertencia a um irmão, mas é uma área passível de desapropriação”, argumenta Dênis.

No agravo de instrumento da Defensoria Pública que suspendeu a ação de reintegração de posse consta uma lista de irregularidades cometidas pela juíza Luciana Carone Nucci Eugênio Mahuad que deferiu a liminar da reintegração em favor do autor.

Entre as irregularidades a de não seguir a recomendação nº 90/2021 do Conselho Nacional de Justiça para que não ocorram reintegrações enquanto não houver conclusão das etapas do Plano de Imunização. E pede ainda o provimento do recurso para que seja reconhecida a nulidade da liminar “em vista da ausência da intimação da Defensoria Pública para prévia manifestação”. Cita ainda o pedido de revogação de urgência por ausência dos requisitos do artigo 561, do Código do Processo Civil.

Apoio de advogada

A Defensoria não soube da reintegração pela juíza, mas pela advogada Geovana Ungaro Rodrigues.

“Fizemos o pedido inúmeras vezes para que a juíza suspendesse essa ordem, que se arrasta desde o ano passado, mas sempre negados”, conta a advogada Geovana Ungaro Rodrigues.

Em um dos agravos enviado ao desembargador do Tribunal de Justiça em 4 de março, ela aponta: “trata-se de problema de natureza social gravíssimo, resultado da omissão do Estado Brasileiro no cumprimento do artigo 6º da Constituição Federal de 1988”, que afirma “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, a moradia…”.

“Nós interpusemos um recurso de agravo de instrumento e felizmente também conseguimos levar o caso para a Defensoria Pública em SP, que possui um núcleo especializado em Habitação”, ressalta Geovana.

Conforme levantamento da FNL, apontado por Denis, há somente em Votorantim 8.900 famílias sem moradia. “A gente vai continuar fazendo esse enfrentamento, porque somente com a resistência dos trabalhadores é que conseguiremos uma transformação”.


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