20 anos depois

Assassinato de trabalhador rural em 2000 será julgado pela Corte da OEA

Comissão da Organização dos Estados Americanos concluiu que o Estado brasileiro violou diversos direitos consagrados. Apesar de tardia, denúncia expõe a violência policial e a perseguição aos movimentos sociais no Brasil

Wellington Lenon/ MST
Wellington Lenon/ MST
Um ano após o massacre, o arquiteto Oscar Niemeyer dedicou monumento às margem da BR 277 em homenagem a Antônio Tavares e a todas as vítimas do latifúndio

São Paulo – O assassinato impune do trabalhador rural Antonio Tavares Pereira pela Polícia Militar do Paraná, em maio de 2000, foi apresentado à Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Desde 2004 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) analisava o caso “Antonio Tavares Pereira e outros vs. Brasil”, que deixou ainda 185 trabalhadores rurais feridos. Todos eram militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

O massacre é considerado pelo MST como um dos momentos mais emblemáticos do processo de violência e de criminalização na luta pela terra.

A denúncia à CIDH partiu da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Justiça Global, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP) e Terra de Direitos devido à da omissão do Estado quanto à responsabilização dos envolvidos no assassinato do trabalhador e repressão massiva.

Os policiais envolvidos permanecem impunes. Em 4 de maio de 2000, dois dias após o massacre, foi instaurado Inquérito Policial Militar (IPM). Mas em outubro daquele ano o Ministério Público Militar deu parecer favorável ao arquivamento dos autos e a Justiça Militar determinou o arquivamento do caso.

Violação de direitos

A CIDH concluiu que o Estado brasileiro violou os direitos consagrados nos artigos 4.1 (direito à vida), 5.1 (integridade pessoal), 13 (liberdade de pensamento e expressão), 15 (direito de reunião), 22 (direito de movimento e de residência), 8.1 (garantias judiciais) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Americana.

E recomendou a reparação integral das vítimas diretas e dos familiares de Antonio Tavares, medidas de atenção à saúde física e mental necessárias à reabilitação das 185 vítimas diretas e dos familiares de Antonio Tavares. Além disso, a investigação de maneira diligente, imparcial e efetiva para esclarecer os fatos de forma completa e impor as punições que correspondam às violações.

A Comissão recomendou ainda medidas de capacitação dirigidas aos órgãos de segurança que atuam no contexto de manifestações e protestos. 

Omissão do Estado brasileiro

Para o coordenador da organização Terra de Direitos Darci Frigo, a denúncia da CIDH é o reconhecimento de uma grave violação ao direito à vida. E que o Estado brasileiro se omitiu ao não apurar as responsabilidades sobre o assassinato e nem punir o autor do crime e demais autoridades que tenham alguma responsabilidade pela repressão ao MST. “O Estado brasileiro, ao não aplicar a lei para apurar a conduta que tirou a vida de uma pessoa, deve ser responsabilizado”, disse Frigo.

A expectativa de Frigo é que a audiência na Corte seja uma oportunidade de avanço em políticas públicas para a garantia do acesso à terra no Brasil. “Estamos vivendo o pior momento de possibilidade de garantia de direitos de acesso à terra. Os órgãos responsáveis por regularizar áreas territórios quilombolas, fazer a reforma agrária ou demarcar terras indígenas estão proibidos pelo próprio presidente da República de exercitar comandos constitucionais que determinam a reforma agrária, titulação quilombola”, disse. 

“Não há possibilidade concreta de avanço de direitos. Enquanto isso, no Congresso Nacional, há uma agenda de retirada de direitos, essa combinação explosiva de ausência total de políticas sociais e cada vez mais do pacto constituinte de 1988”, destacou.

Violência policial

A coordenadora da Justiça Global, Sandra Carvalho, destaca que “a chegada do caso Antônio Tavares à Corte Interamericana é uma grande oportunidade para se debater a violência policial no Brasil e competência da Justiça Militar para julgar crimes comuns cometidos por policiais militares em serviço, via de regra, assegurando a não responsabilização desses agentes públicos”.

Se houver condenação do Estado brasileiro, esta será a terceira responsabilização do Brasil pela Corte Interamericana por graves violações aos direitos humanos de integrantes do MST do Paraná. A primeira foi pelo assassinato do trabalhador rural Sétimo Garibaldi e por interceptações telefônicas ilegais contra associações de trabalhadores rurais ligadas ao MST.

Apesar de os crimes terem ocorrido há 21 anos, caberá ao governo de Jair Bolsonaro responder – enquanto Estado brasileiro – ao julgamento.    

Relatório da CIDH     

Em seu Relatório de Mérito, proferido em 2020, a CIDH aponta que o Estado brasileiro não apresentou explicação que lhe permitisse considerar que a morte de Antonio Tavares tenha resultado do uso legítimo da força. Pelo pelo contrário, ressaltou que não há controvérsia em três aspectos fundamentais. Para a comissão, o tiro que matou o trabalhador partiu de um policial militar, que não agiu em legítima defesa, mas sim para assustar os manifestantes. Além disso, o tiro foi disparado quando a vítima estava desarmada. 

Assentado da reforma agrária no município de Candói e liderança do Sindicato dos Trabalhadores Rurais do município, Antonio Tavares tinha 38 anos. Deixou mulher e cinco filhos.

O ataque não foi um caso isolado. Está inserido num contexto de grande repressão aos movimentos sociais de luta pela terra no Paraná imposta pelo então governador Jaime Lerner. Durante os seus dois mandatos (de 1994 a 2002), 16 trabalhadores foram assassinados, 502 foram presos, 324 feridos, sete torturados. Fora os 47 ameaçados de morte e os 31 que sofreram tentativas de homicídio. No período houve 134 despejos violentos no estado.

O massacre

Naquele 2 de maio de 2000, trabalhadores rurais sem terra seguiam em caravana do interior do Paraná a Curitiba em cerca de 50 ônibus. O destino era a Marcha pela Reforma Agrária, organizada pelo MST, em comemoração ao Dia dos Trabalhadores. Um bloqueio da Polícia Militar na BR 277 levou os passageiros a descer de um dos ônibus em busca de informações. Foi nesse momento que os PMs fizeram disparos contra os trabalhadores. A Polícia Militar agiu por determinação do governo do estado, sem qualquer ordem judicial.

Um ano após o assassinato, um monumento criado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer foi inaugurado no local do crime, às margem da BR -277. A obra de 10 metros de altura presta homenagem a Antonio Tavares e a todas as vítimas do latifúndio.

José Damasceno, da coordenação estadual do MST no Paraná, espera que o Estado brasileiro seja condenado. E que a Corte Interamericana ajude a pautar na sociedade o respeito aos movimentos sociais e à democracia.

“Essa vitória é uma conquista, nos alivia, e nos dá condições melhores de discutir a violência que o Estado brasileiro cometeu. É importante que o assassinato do Antonio Tavares e de muitos outros militantes de movimentos populares em todo o Brasil não caiam no esquecimento e fiquem à mercê da política adotada pelo Estado, de colocar panos quentes, de absolver, e mantendo a impunidades de crimes. A impunidade acaba incentivando que surja mais violência”, disse.

Redação: Cida de Oliveira. Edição: Glauco Faria


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