Nos rios

Uma geração de vítimas de escalpelamento na região Norte tenta retomar a vida

Com cabelos presos ao eixo dos barcos, meninas morrem ou sofrem sequelas para o resto da vida. MPT e outras entidades se mobilizam

MPT/Reprodução
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Kátia sofreu acidente aos 9 anos, em rio no Amazonas. Aos 46, ainda busca tratamento

São Paulo – O enredo é quase sempre o mesmo, assim como o desfecho trágico. Mulheres e meninas ribeirinhas da região Norte, muitas crianças e adolescentes, brincam ou se aproximam, curiosas, do eixo dos barcos, seus cabelos – sempre longos – ficam presos e são arrancados, assim como a pele. São as vítimas do chamado escalpelamento, que já atingiu centenas de pessoas – mais de 400 apenas no Pará, quase todas mulheres. Assim, além de parte do corpo, elas têm arrancada uma parte da vida e enfrentam dificuldade de inserção social e profissional.

Os seguidos episódios, com suas consequências, têm levado instituições, nos últimos anos, a organizar iniciativas para tentar evitar que se repitam e ajudar na recuperação das vítimas. Agora, uma parceria entre o Ministério Público do Trabalho (MPT) e o Escritório das Nações Unidas de Serviços para Projetos (Unops) prevê cursos de capitação sobre empreendedorismo. Um primeiro curso, on-line, terá 50 vagas, com o objetivo de aumentar a possibilidades de emprego e renda. O projeto se concentra, a princípio, no Pará e no Amapá.

Negócio próprio

Segundo o MPT, pesquisa realizada pela Coordenadoria Nacional de Trabalho Portuário e Aquaviário (Conatpa) da entidade, com 43 mulheres, mostrou mais de 70% interessados em montar negócio próprio. O projeto caberá ao Unops, parte em parceria com o Instituto Rede Mulher Empreendedora. Segundo a diretora do Escritório no Brasil, Claudia Valenzuela, o curso vai considerar necessidades e a realidade das alunas. “Nossa missão é ajudar as pessoas a construir vidas melhores, e é isso que vamos fazer, em parceria com o MPT”, afirma.

Há quase três anos, a Conatpa criou o GT (Grupo de Trabalho) Escalpelamento por Embarcações, para acompanhar os casos mais de perto e buscar melhores condições de vida para as vítimas. “Creio que há um número muito superior”, diz a coordenadora do GT, a procuradora Tatiana Amormino, referindo-se a ocorrências não registradas no sistema público de saúde. No último dia 19, por exemplo, um acidente vitimou uma adolescente de 15 anos. “São casos que já poderiam ter sido erradicados no nosso país”, acrescenta.

Trauma e sequelas de um escalpelamento

A procuradora lembra que os eixos dos motores devem obrigatoriamente ter proteção, e a Marinha executa esse serviço, mas ainda assim há certo receio entre os ribeirinhos. Além disso, outro fator, cultural, contribui para os acidentes: os cabelos longos e soltos das mulheres da região. “Há uma falta de preocupação de prender os cabelos. Essa é uma medida simples que ajudaria muito”, diz Tatiana. Em geral, os acidentes ocorrem em áreas com pouca estrutura e de difícil acesso.

“As que sobrevivem ao trauma levam sequelas irreversíveis. Sofrem fortes dores de cabeça, não podem se expor ao sol. E não conseguem retornar à escola, sofrem discriminação”, afirma ainda a procuradora. Não bastasse isso, precisam se submeter a seguidas cirurgias de reparação. Dessa forma, têm o futuro “completamente comprometido”. Há ainda situações que podem ser caracterizadas como acidente de trabalho, que nem sempre são reconhecido, assim como benefícios de prestação continuada.

Família destruída

Kátia Valéria Batista da Silva sofreu acidente aos 9 anos, no rio Purus, no Amazonas. “Hoje ainda estou atrás de tratamento”, diz, em depoimento gravado para o projeto. Ela está agora com 46 anos. Na época, conta, “destruiu toda a minha família, porque todo recurso foi para meu tratamento, minha família ficou numa situação bem difícil”. Nos dois primeiros anos, lembra, dormia com a cabeça fora da cama: “Sentia muito dor”.

Recebida no Espaço Acolher, da Santa Casa de Belém, Kátia começou a se sentir melhor, especialmente pelo contato com outras mulheres e meninas na mesma situação. “A gente conversando começou a se abrir uma com a outra.” Nas reuniões, elas tiram as perucas e lenços que cobrem as cabeças marcadas. Compartilham suas dores. Desabafam, como diz Kátia: “Vamos contar a nossa história, como a gente está superando”.

A assistente social Luzia: espaço foi criado em Belém para acolher as vítimas e reduzir períodos de internação (MPT/Reprodução)

Ela acredita que é preciso uma lei para punir os responsáveis. “Se não fizer isso, nunca vai parar. Na hora que tem acidente, todo mundo se sente mal, a família sofre, aquela loucura, mas na realidade, depois, quem vai ficar com as dores o resto da vida, o preconceito, aquele medo, é a vítima”, afirma.

É preciso prevenir

Coordenadora do Espaço Acolher, a assistente social Luzia Matos conta que o local surgiu em 2006, em substituição a um abrigo fechado. “Aí, você imagina: uma pessoa com uma ferida exposta, grave, ela tinha várias infecções… (…) Como todas são do interior do estado, a maioria do Marajó, liberar pra casa delas era entregar essa menina pra morte”, afirma, também em depoimento divulgado pelo Ministério Público.

Dessa forma, na Santa Casa, que se tornou referência nesse tipo de caso, se discutiu a necessidade de atendimento especializado, multidisciplinar e de longa duração. Um local, como diz o nome, que acolhesse as vítimas dos escalpelamento, até para reduzir os períodos de internação entre uma cirurgia e outra. “A prevenção é a saída. E como é que a gente previne? Com educação, formação, orientação, disciplina. É importante que os municípios assumam essa causa.” Para que as meninas possam, simplesmente, navegar pelos rios e pela vida.


Vídeo: o escalpelamento anda acontece

Narração da atriz Dira Paes. (Aviso de cenas chocantes)