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Fura-filas da vacina: elites seguem tradição histórica ‘de levar vantagem em tudo’

Empresários, políticos e servidores desrespeitam prioridade da vacinação contra a covid-19 em 12 estados e no Distrito Federal. Em meio à escassez de vacina, ato é grave e criminoso, avalia a Abrasco

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Herdeiras da família Lins não atuaram na linha de frente da pandemia nos últimos 10 meses, mas foram nomeadas entre um dia e horas antes do início da vacinação na terça (19)

São Paulo – Ministérios públicos estaduais e federal apuram denúncias, em pelo menos 12 estados e no Distrito Federal, de autoridades, empresários e servidores cometendo o chamado fura-fila de prioridade para tomar a vacina contra a covid-19. As restritas doses da CoronaVac, o único imunizante disponível no Brasil, até esta sexta-feira (22), deveriam ser aplicadas apenas entre os trabalhadores da saúde que atuam na linha de frente contra o novo coronavírus. Assim como entre idosos e pessoas com deficiência institucionalizadas e indígenas aldeados, conforme definido pelo Plano Nacional de Imunizações do governo de Jair Bolsonaro. 

Mas, em algumas cidades, os critérios não são seguidos e a fila de vacinação é “furada” por pessoas que não estão no grupo prioritário. Uma conduta irregular, segundo o MPF, que pode levar à apuração do órgão por improbidade administrativa e criminal. 

Investigação em 12 estados

Esse é o caso, por exemplo, do prefeito de Candiba, na Bahia, Reginaldo Martins Prado (PSD). No município de pouco mais de 14 mil habitantes, Prado recebeu a primeira das 100 doses de vacina entregues. Apesar de ter 60 anos, o prefeito não se enquadra nos critérios da primeira fase. Mas foi imunizado, afirma a administração, por “um ato de demonstração de segurança, legitimidade e eficácia da vacina, como forma de incentivo para a população, que está desacreditada”. 

Os ministérios da Bahia e federal, no entanto, não aceitaram a justificativa e ajuizaram duas ações civis. Prado pode responder à Justiça Federal por improbidade administrativa e indisponibilidade de seus bens para pagamento de multa no valor de R$ 145 mil. 

Numa ação semelhante, o MP do Amapá também instaurou inquérito civil para apurar se o secretário de Saúde do município de Serra do Navio, Randolph Antônio Pinheiro da Silva, usou do cargo para receber o imunizante contra a covid-19. Randolph, que contestava a eficácia da vacina pelas redes sociais, foi também um dos primeiros a tomar a dose da CoronaVac, na terça-feira (19). 

Mais casos de fura-fila da vacina 

A Promotoria apura se a esposa do secretário também recebeu indevidamente a vacina. O gestor alega que tem 60 anos e que se considera profissional da saúde da linha de frente. Sua companheira, ainda segundo ele, também atua em uma equipe de saúde da prefeitura que atende pacientes com a covid-19. 

Casos de irregularidade são investigados nas cidades de Eusébio, Aquiraz, Juazeiro do Norte e Quixadá, no Ceará. De acordo com o MP, gestores públicos, prefeitos e vice-prefeitos também teriam sido vacinados apesar de não estarem nos grupos prioritários dos planos dos governos federal e estadual.

No Distrito Federal, a força tarefa de enfrentamento à covid-19 do MP local encaminhou ofício à secretaria estadual de Saúde, requisitando o envio da lista de vacinados. Os promotores querem identificar se houve casos de privilégio na vacinação após denúncias de que servidores, fora do grupo prioritário, teriam recebido as doses do Instituto Butantan. 

Em Montes Claros, Minas Gerais, o prefeito Humberto Souto (Cidadania) também foi vacinado contra a covid-19, sem fazer parte do grupo da primeira fase de imunização. Assim foi com os prefeitos das cidades de Belém e Pombal, na Paraíba. Dona Aline (PDT), e Verissinho Abmael (MDB), respectivamente, são investigados pelo Ministério Público do estado pelo fura-fila da vacina. 

Doses da vacina são restritas

Até as 19h desta sexta, havia ainda denúncias em quatro cidades de Pernambuco, seis cidades do Piauí, duas em Sergipe. Castanhal, no Pará, e na capital do Rio Grande do Norte também são investigados. Na cidade de Tupã, em São Paulo, a imagem de um diretor da irmandade que administra a Santa Casa, recebendo a vacina, publicada em redes sociais, causou polêmica e levou à suspensão do processo de imunização nesta quinta (21). A campanha foi retomada na tarde do mesmo dia, segundo o G1. A prefeitura afirma não ter visto irregularidades, apesar de dirigentes de hospitais não estarem classificados como “profissionais da linha de frente”. O caso é agora investigado pelo MP.

A preocupação das autoridades é que diante do número restrito de doses, o processo de vacinação não consiga imunizar sequer a população que tem prioridade inicial. Há no momento 6 milhões de vacinas disponíveis no país. Porém, segundo o plano do governo federal, 14,9 milhões de pessoas deveriam ser vacinadas nesta primeira fase. Furar a fila, portanto, pode significar que as pessoas do grupo prioritários não tenham acesso à vacina.

Em Manaus, por exemplo, onde a rede de saúde colapsou e falta tudo, de leitos a oxigênio nos hospitais, o Ministério Público do Amazonas abriu também uma investigação para apurar fraude na destinação do primeiro lote de CoronaVac. A abertura da ação levou em conta a autorização dada pelo prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), para vacinar as médicas recém-formadas Gabrielle Kirk Maddy Lins e Isabelle Kirk Maddy Lins que foram contratadas pela prefeitura em caráter emergencial e sem concurso. 

Vantagens nada republicanas

Irmãs-gêmeas, as duas médicas não chegaram a atuar nesses 10 meses de pandemia. Mas compartilharam em suas redes sociais o momento em que receberam o imunizante após serem nomeadas pela Secretaria Municipal de Saúde (Semsa) nesta semana. Isabelle, na segunda (18), algumas horas antes do início da vacinação. Gabrielle cometeu seu fura-fila da vacina no dia seguinte. A foto das recém-nomeadas causou polêmica. De um lado, sindicatos dos profissionais da saúde denunciam, por exemplo, que parte dos trabalhadores da linha de frente ainda não foram imunizados. Enquanto de outro, a população questiona o uso da vacina para “beneficiar a elite manauara” em detrimento dos que mais precisam. 

Isabelle e Gabrielle são filhas de Niltinho Lins Júnior, herdeiro do hospital e da universidade Nilton Lins. De acordo com o portal Amazônia Real, a família rica ainda mantém negócios com a prefeitura e o governo do Amazonas. As duas, inclusive, irão atuar como médicas na Unidade Básica de Saúde (UBS) Nilton Lins, que foi aberta neste mês no campus universitário da própria família. 

Governo de São Paulo/Divulgação
Campanha de vacinação mal planejada, com escassez de vacinas, junto a uma atitude negacionista e pouco empática do presidente, potencializa atitudes egoístas

Além das herdeiras dos Lins, o médico David Dallas também compartilhou nas redes sociais sua foto no ato do fura-fila da vacina. Filho do ex-deputado e empresário Wanderley Dallas, ele foi nomeado pela secretaria em 1º de janeiro deste ano. Os três assumiram o cargo de “gerente de projetos”. Isso porque, segundo o prefeito, “foi a forma mais ágil para colocá-los imediatamente no atendimento de pacientes em Manaus. Outro processo de contratação levaria de 30 a 60 dias”, justificou à imprensa. Assim como as irmãs Lins, David Dallas foi contratado sem concurso público. O trio terá um salário de cerca de R$ 8 mil.

População de Manaus não respira

Em resposta, a prefeitura decretou uma portaria proibindo que os servidores municipais postem fotos da vacinação em suas redes sociais. A medida é questionada pelo MP estadual e o Tribunal de Contas do Amazonas. Os órgãos cobram a suspensão da portaria e a listagem completa dos vacinados.

Quem acompanha de perto as denúncias, o impacto da pandemia sob sistema de saúde e, no último dia 14 de janeiro, viu faltar oxigênio na cidade, – o que levou pacientes à morte –, destaca que a população só sente medo e descrença. 

“As pessoas estão como se não tivessem acreditando em tudo isso. É tão absurdo faltar oxigênio que elas não têm explicação para isso. Não tem como faltar uma ferramenta que é fundamental para o funcionamento de um hospital. Eu sinto o medo nas pessoas, que estão contidas, com o grito e o choro presos. Estamos a todo tempo passando listas. De oração, de nomes de pessoas que precisam de alimentos, das que precisam de oxigênio, perguntando sobre quem está doando fralda descartável. É tanta coisa que nem dá para a gente sistematizar as demandas que estão chegando e as pessoas que estão morrendo a cada hora”, desabafa a historiadora Francy Júnior. 

“A cada momento que a gente pensa que vai respirar, (acontece algo) e falta o ar”, completa. 

Os novos coronéis 

Ativista pelos direitos humanos há 30 anos e integrante do Movimento de Mulheres Negras da Floresta Dandara, ela observa que os fura-filas da elite são reprodução de uma era que ainda não acabou: a dos “coronéis de barranco”. 

Eternizados na literatura como os mandatários do ciclo da borracha, os coronéis ganham roupagem contemporânea ao “beneficiar quem os beneficia”, diz Francy. A prática “clientelista” também foi citada pelo diretor do Instituto do Butantan, Dimas Tadeu Covas, para descrever as denúncias de desvios das vacinas. 

Nesta semana, ao Jornal da Cultura, Covas advertiu que esse era um problema “mais do que anunciado”. “Se não forem tomadas medidas de controle efetivo, a vacina será usada como moeda de troca”, apontou. “A prática dos municípios muitas vezes são práticas clientelistas”. 

O peso do governo Bolsonaro 

Vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães também reforça que há de fato algo histórico que explica essa “falta de empatia e solidariedade”. Mas o pesquisador do Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nubea-UFRJ) também pondera que o desprezo a esses valores foi “enormemente reforçado pela falta de empatia, o negacionismo e a irresponsabilidade do presidente da República”, Jair Bolsonaro. 

“Se esse fura-fila da vacina está ocorrendo, e parece que está, isso depende dessas duas coisas”, afirma. “Esse é o problema. Há digamos uma coisa meio atávica da população brasileira, principalmente de suas elites, no sentido de levar vantagem em tudo. Mas essa é também uma campanha de vacinação mal planejada, com escassez de vacinas, uma atitude negacionista e pouco empática do presidente da República e com a incompetência do ministro da Saúde”, explica. 

A escassez de vacinas

Guimarães observa que os critérios atuais de distribuição das doses da vacina, que reproduzem escalas internacionais, deixam claro o que deve ser obrigatoriamente seguido neste momento. E que a intervenção do Ministério Público e das instâncias judiciais devem, de fato, regular a aplicação em casos de desvios pelos municípios. No entanto, o vice-presidente da Abrasco reforça que se o fura-fila da vacina é um problema grave, é justamente porque não temos vacina

“É criminoso a pessoa que não está no grupo de risco e de alguma maneira consegue receber a vacina. Agora, se nós tivéssemos uma quantidade de vacina como estava originalmente programado, esse fenômeno não seria sequer sentido”, declara. “Temos uma escassez global de vacinas, a produção é muito menor do que a demanda, mas o Brasil virou um pária diplomático internacional e está sendo posto para o fim da fila e está tendo que mendigar. Nunca foi assim”, contesta. 

Diante das queixas de desvios, o MPF abriu canais de denúncia contra os fura-filas. O objetivo é que os municípios tenham rigor na ordem prioritária de vacinação.