Olhos que condenam

Jovem negro, acusado injustamente oito vezes, é absolvido no STJ após falso reconhecimento

Decisão do Superior Tribunal de Justiça reforçou que reconhecimento fotográfico não pode ser a a única base para condenação no âmbito penal

Arquivo EBC
Arquivo EBC
Em decisão, Supremo reconhece que o acusado foi condenado por um processo que levou em conta apenas o reconhecimento por foto e que desconsiderou a descrição do autor feita pela vítima

São Paulo – O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforçou, nesta terça-feira (15), que o reconhecimento fotográfico não pode ser a única prova para condenação. A menção foi realizada no âmbito do julgamento do pedido de habeas corpus de Tiago Vianna Gomes, de 27 anos. Condenado em 2ª instância, ele foi acusado de roubar uma motocicleta, em 2017. A denúncia, no entanto, se baseou apenas no reconhecimento por foto. 

Tiago teve sua imagem incluída no “álbum de suspeitos” do 57º Distrito Policial do Rio de Janeiro, na Baixada Fluminense, e, desde então, foi denunciado por roubo em oito situações diferentes, sempre com base apenas no reconhecimento fotográfico. Ele foi absolvido em primeira instância em todos os casos, justamente pelo entendimento de que o reconhecimento estava sendo feito de forma errada, o que não seria suficiente para provar a autoria delitiva. O Ministério Público, contudo, contestou a absolvição em primeiro grau no caso da motocicleta e Tiago foi condenado pela 2ª Câmara Criminal do Rio de Janeiro. 

Em outubro, a pedido da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, o caso foi apreciado pelo ministro do STJ Sebastião Reis, que negou a concessão de HC para o jovem. A Defensoria entrou novamente com recurso para apreciação da 6ª Turma da Corte. O caso foi analisado por Sebastião que, desta vez, voltou atrás na decisão e absolveu Tiago

Erro judicial na acusação

A defesa aponta que a condenação do jovem foi baseada em um erro judicial. A vítima, que fez o reconhecimento da foto, descreve o autor do roubo nos autos do processo como um homem moreno de 1,65 m de altura. Tiago é um homem negro com 1,80 m de altura. As divergências foram desconsideradas pelo Tribunal de Justiça do Rio, que relativizou a diferença de 15 cm de estatura como algo que “não é assim tão grande”.

No julgamento desta terça, o ministro relator do caso reconheceu a falta de semelhança entre o acusado e o verdadeiro suspeito. “A altura do agente do crime de 1,65m destoa absolutamente da altura do acusado. A imagem da foto e a descrição fornecida pela vítima guarda semelhança com outro indivíduo”, declarou, em sua decisão. Sebastião também destacou que Tiago foi apresentado na sede judicial ao lado de outras pessoas com tonalidades de pele diferentes. O que, segundo o ministro do STJ, pode ter comprometido o procedimento. 

Reconhecimento não pode ser a única prova

Na decisão, Sebastião também considera que a Câmara Criminal condenou Tiago com base exclusivamente no reconhecimento fotográfico. “Sem desconstruir de forma absoluta as ponderações lançadas pelo magistrado na sentença aptas a extinguir, ou pelo menos reduzir o grau de confiabilidade e certeza da prova”. O ministro advertiu que o procedimento não pode ser a única prova para condenação. 

Em entrevista ao ConJur, a defensora Rafaela Garcez, responsável pela defesa do jovem que cumpria prisão domiciliar, destacou que a inclusão da foto de Tiago no álbum de suspeitos o colocou em sofrimento por “diversos reconhecimentos, sem nunca ter sido preso com qualquer arma ou ter sido encontrado qualquer pertence das vítimas. Ele nunca teve qualquer envolvimento com atividades criminosas. O paciente fará 27 anos, tem trabalho lícito, residência, filhos e mãe. Tem uma vida que deixou de ser normal em virtude dos diversos processos que ele vem respondendo”, lamentou a defensora.

O órgão também questiona quando e por quê a foto de Tiago foi parar no álbum de suspeitos.

Código de Processo Penal é desconsiderado

Para o advogado criminal e diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), José Carlos Abisaamra Filho, esse é um caso emblemático de como funciona o sistema de Justiça no Brasil na questão do falso reconhecimento. O IDDD, que participou como amicus curiae no julgamento do habeas corpus da Defensoria, destaca que o artigo 226 do Código de Processo Penal não tem sido observado. O álbum de suspeitos, por exemplo, sequer está descrito no dispositivo.

“O problema é que o sistema jurídico brasileiro está deixando de investigar, de dar valor ao devido processo legal, para privilegiar soluções rápidas. O momento em que o réu tem para se defender, que é o processo penal, o momento em que o acusado produziria provas de que não é ele, não está sendo privilegiado pelo nosso sistema jurídico. E aí a defesa e o réu ficam diminuídos no processo. E a chance de acontecer um erro, que começou no reconhecimento, é muito grande”, explica Abissamra em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual

O falso reconhecimento, destaca o advogado, é hoje a maior causa de erro judicial, e não apenas no Brasil. Uma pesquisa do Innocence Project, nos Estados Unidos, analisou 250 processos de revisão criminal em que o DNA acabou inocentando os acusados, apontando que em 190 casos o erro do Judiciário na condenação foi justamente por reconhecimento pessoal falho. Em 93 deles, o equivalente a 49%, decorreu de reconhecimento feito por pessoas de raças distintas das apontadas como suspeitas. 

Peso no racismo na Justiça

No Brasil, o racismo estrutural brasileiro também tem peso no sistema de falso reconhecimento. A Defensoria e o IDDD questionam a constituição do álbum de suspeitos. De acordo com as entidades, eles são um “catálogo de pessoas categorizadas pelo Estado como passíveis de desconfiança”. 

De acordo com o IDDD, o álbum caracteriza “uma verdadeira presunção de culpa de jovens homens negros na maioria das vezes”. Recentemente, o violoncelista Luiz Carlos Justino foi preso por suposto roubo com arma de fogo, após reconhecimento por foto. Justino ficou em cárcere por dois meses, até ser solto em setembro, em um processo sem investigação prévia que considerava apenas sua imagem nos arquivos da polícia civil sem que tivesse qualquer passagem pelo sistema prisional.

Reconhecimento por foto é falho 

A 6ª Turma do STJ já havia decidido também em outubro que o reconhecimento por foto não bastava para condenação. O que foi reforçado pelo ministro Sebastião Reis no julgamento do HC. Abissamra ressalta que a consideração apenas da imagem pode falhar também devido às chamadas “falsas memórias”. 

“Quando a pessoa é roubada, ela não olha para o ladrão, olha para a arma. A chance de ela gravar na memória o rosto daquela pessoa é mínima. É razoável acreditar que nós vamos nos confundir. A memória humana funciona de uma forma que traz elementos da vida, medos, referências, estereótipos. Quando essa vítima é submetida ao reconhecimento, a chance de reconhecer a real pessoa que a roubou é muito pequena”. 

Apesar disso, o diretor do IDDD destaca que é possível assegurar que esse tipo de erro não ocorra quando a lei é aplicada corretamente. “É por isso que existe um Código de Processo Penal estabelecendo a forma de investigação, quem é a autoridade isenta para checar e dizer se o procedimento está correto”, adverte.

Redação: Clara Assunção. Edição: Glauco Faria