Condenação do Brasil

Caso Araguaia foi ‘emblemático’ na região, afirma vice da Comissão Interamericana

Para Antonia Urrejola, julgamento e ação dos familiares ajudaram a tornar públicos fatos sempre negados pelas autoridades brasileiras

Reprodução
Reprodução

São Paulo – Apesar de as determinações ainda não terem sido cumpridas pelo Brasil, o julgamento do caso Araguaia, em 2010, foi “emblemático” para a região, avalia a vice-presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a chilena Antonia Urrejola Noguera. Relatora para memória, verdade e justiça, ela participou nesta semana de encontro sobre os 10 anos do julgamento e suas consequências. Para ela, a condenação do Estado brasileiro ajudou a tornar públicas “evidências negadas pelas autoridades por muitos anos”.

Transmitido na página do Facebook do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), da Universidade Federal de São Paulo, o debate foi dividido em dois dias – os vídeos estão disponíveis. No primeiro, cinco mulheres com envolvimento no tema lembraram de dois julgamentos. O da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que condenou o Brasil em novembro de 2010, e o do Supremo Tribunal Federal, meses antes, que ratificou a Lei da Anistia – Lei 6.683, de agosto de 1979. (Existem Comissão e Corte Interamericana – os julgamentos cabem à segunda.)

“Supremo saiu da curva”

Ex-secretário estadual da Justiça em São Paulo, ex-membro da Comissão Justiça e Paz e defensor de presos políticos, o advogado Belisário França fez referência a votos “mais políticos que jurídicos” do STF no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, que pedia revisão da lei de 1979. “O Supremo Tribunal saiu da curva para decidir esse caso”, afirmou.

Mas Belisário acrescenta: “A sentença não veda acesso à memória e verdade, não veda acesso a arquivos. A decisão do Supremo Tribunal não impede ações civis contra a União ou contra os próprios torturadores”. Sem entrar no mérito do movimento em si, o advogado, em termos históricos, considera o Araguaia um “episódio de resistência” que guarda semelhanças na repressão com Canudos (BA), no final do século 19. A cidade liderada por Antônio Conselheiro só caiu após quatro expedições do Exército.

“Foi uma resistência heróica, desigual em armas”, diz o advogado. “Essa guerrilha merece um enfoque sob a luz do Direito, que a sentença Gomes Lund (nome formal do caso Araguaia) trouxe.” Mas revogar agora a Lei da Anistia provocaria uma “confusão tremenda”, acredita, defendendo outro tipo de ação. “É necessário diminuir o espaço vital para os torturadores ainda vivos. Eles vão responder por isso até o fim dos seus dias, porque isso é justiça.”

Poder transformador

Diretora executiva do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), Viviana Krsticevic ressalta o “poder transformador” de decisões como a do caso Araguaia, ainda que as dores permaneçam. “Creio que uma consequência (do julgamento) é ter ajudado um grupo muito maior na sociedade e dentro do próprio movimento de direitos humanos. Falta muito. Mas há uma resposta. Os familiares de Araguaia e de muitos casos criaram um direito fundamental, ajudaram a gerar toda uma arquitetura institucional para reconhecer a dignidade, conter a injustiça.”

O procurador da República Sergio Suiama lembrou que a primeira ação do Ministério Público Federal (MPF) pedindo punição a agentes do Estado, em 2012, foi referente justamente a cinco desaparecimentos no Araguaia, nos anos 1970. Desde então, foram 37 ações penais propostas, envolvendo mais de 60 agentes da ditadura. Formalmente acusados de crimes de lesa-humanidade. “Um ataque sistemático e generalizado contra uma população civil”, conceitua o procurador.

Ele lembra que a Corte Interamericana não entrou no mérito da constitucionalidade da Lei da Anistia. Apenas considerou que ela não é válida para fins de Direito Internacional. E o Estado brasileiro deveria cumprir a sentença. Não aconteceu até hoje, assim como todas as ações penais propostas pelo MPF não foram acolhidas pela Justiça brasileira. Mas as iniciativas apontaram caminhos e vão continuar. Mesmo sendo “lutas inglórias”, como diz Suiama, citando trecho do clássico O Mestre-Sala dos Mares, composição de João Bosco e Aldir Blanc.

Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história
Não esquecemos jamais