Justiça X Mulheres

Caso Mariana Ferrer: com tese de ‘estupro culposo’, empresário se livra de condenação

Juiz acatou argumento de que André de Camargo Aranha “não teve intenção” de violentar a vítima. Mariana foi atacada por advogado em audiência, com permissão do juiz

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Tese coloca em risco a palavra da vítima e inocenta acusado por estupro. Nas redes sociais, internautas emplacam campanha por Justiça para Mariana Ferrer

São Paulo – A Justiça de Santa Catarina utilizou um “crime” não previsto em lei para inocentar o empresário André de Camargo Aranha, acusado pelo estupro da jovem promoter de festas, Mariana Ferrer. Ele havia sido identificado pela Polícia como autor do ato de violência sexual, que teria ocorrido durante uma festa em Jurerê Internacional, Florianópolis, no final de 2018. À época com 21 anos, Mariana, que era virgem, denunciou ter sido dopada e violentada. 

Mas, para o juiz Rudson Marcos, da 3ª vara Criminal de Florianópolis, Aranha, não teve a intenção de cometer o crime. A sentença proferida no julgamento em setembro deste ano, veio à tona nesta terça-feira (3) em reportagem do The Intercept Brasil. O site apurou que a tese de “estupro culposo” usada na defesa do empresário não tem qualquer precedente na Justiça brasileira. E foi baseada numa interpretação do promotor responsável pelo caso, Thiago Carriço de Oliveira. 

O promotor argumentava que o empresário não teria como saber que Mariana Ferrer não estava em condições de consentir a relação. Sem “intenção” de estuprar, segundo o Intercept, Aranha cometeu “estupro culposo”. A questão é que trata-se de um crime que não existe, o que torna a pena inaplicável. Por isso, ao final do julgamento, Camargo Aranha foi inocentado. A tese do promotor, no entanto, contraria o próprio parecer inicial do Ministério Público, que considerava o empresário culpado por estupro de vulnerável – quando a vítima não é capaz de demonstrar consentimento ou se defender. 

Mariana Ferrer: não foi consensual 

De acordo com a reportagem, em julho de 2019, o primeiro promotor a assumir o caso, Alexandre Piazza, avaliou que a jovem não tinha capacidade de consentir ao ato sexual. E considerou como prova o material genético colhido de sua roupa e as mensagens desconexas encaminhadas a seus colegas após descer as escadas em direção ao camarim, onde o crime ocorreu. Em uma delas, Mariana Ferrer digitou a uma amiga “pelo amor de Deus, me atende, estou indo sozinha, não aguento mais esse cara do meu lado”. 

Também foram considerados como provas os depoimentos da mãe da vítima, que notou um forte cheiro de esperma quando a filha chegou da festa. A mãe contou que Mariana não tinha o costume de beber e nunca havia chegado em casa naquele estado. O motorista de Uber, que a levou até sua casa, também declarou que Mariana parecia estar sob efeito de drogas. A jovem acredita que tenha sido dopada. O TIB mostrou que a única bebida anotada na comanda do bar em seu nome foi uma dose de gim. E um exame pericial também confirmou que, até a noite do crime, ela era virgem. 

Piazza, contudo, deixou o caso para assumir outra promotoria. Ele chegou a pedir a prisão preventiva de Aranha, mas o pedido foi derrubado em liminar na segunda instância pela defesa do empresário. O novo promotor terminou desconsiderando as provas, baseando a tese de “estupro culposo” nos exames toxicológicos, que não reconheceram álcool ou outras drogas no sangue da vítima, e na sua aparente “sobriedade” ao deixar a festa. 

O processo

O juiz reforçou a tese do promotor, afirmando que era “melhor absolver 100 culpados do que condenar um inocente”, apontou na decisão.

Além da mudança de promotores, o caso foi marcado por troca de delegados, sumiço de imagens e mudança da versão do acusado. Até seu depoimento em maio de 2019, o empresário negava o crime. Mas, ao depor em juízo no ano seguinte, afirmou ter feito apenas sexo oral. A reportagem também levantou imagens das audiências do caso que mostram que Mariana foi humilhada pela defesa de Aranha.

Empresário de jogadores e filho do advogado Luiz de Camargo Aranha Neto, que já atuou em casos pela Rede Globo, segundo o site, ele foi defendido no processo por Cláudio Gastão da Rosa Filho. Um dos advogados mais caros de Santa Catarina e que já representou o “guru” da família Bolsonaro, Olavo de Carvalho e a extremista bolsonarista Sara Winter

A conduta do advogado

Em uma das audiências, o advogado mostrou fotos sensuais da jovem para questionar a acusação de estupro. A jovem rebateu, pedindo a Cláudio Gastão se atentasse aos fatos. Mas o advogado prosseguiu, afirmando que jamais “teria uma filha do teu nível (Mariana). “E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você”. Sem ser interrompido, o advogado insistiu em mostrar imagens que nada tinham a ver com o caso e que foram feitas antes do crime. “Só aparece essa sua carinha chorando. Só falta uma auréola na cabeça. Não adianta vir com esse choro dissimulado, falso, e essa lágrima de crocodilo”, acusou Cláudio Gastão. 

Aos prantos, a jovem implorava por respeito ao juiz. “Nem os acusados, nem os assassinos são tratados da forma como eu estou sendo tratada. Pelo amor de Deus, o que é isso? Eu sou uma pessoa ilibada, nunca cometi crime contra ninguém”, contestou Mariana na audiência. 

A conduta do advogado é investigada pela Ordem dos Advogados (OAB) de Santa Catarina, que convocou Cláudio Gastão a prestar esclarecimentos sobre sua postura durante a audiência. Ao Intercept, o órgão disse que não daria outras informações porque o processo corre em segredo de Justiça. O advogado também não quis comentar o caso e chamou as indagações da reportagem de “descontextualizadas”. 

Repercussão

O caso, que já era acompanhado com indignação por parte da população, emplacou mais uma vez nesta terça a campanha Justiça por Mariana. No twitter, usuários comentam a decisão que inocenta o acusado e a postura do advogado como “absurdas”.

Especialistas consultados pelo Intercept ressaltaram que a tese de “estupro culposo” coloca em risco a única prova que as mulheres acabam tendo para um crime cujos vestígiosos desaparecem em poucas horas: a palavra da vítima. 

Redação: Clara Assunção
Edição: Paulo Donizetti de Souza


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