Invisibilidade que mata

Brasil não sabe quantas pessoas em situação de rua foram contaminadas pela covid-19

De acordo com especialistas e movimentos, as estatísticas estão centradas em quem está abrigado em acolhimentos e centros temporários, o que pode deixar escapar da conta quem vive e dorme nas calçadas das cidades

Rovena Rosa/EBC
Rovena Rosa/EBC
Na cidade de São Paulo, 29 pessoas em situação de rua morreram em decorrência do novo coronavírus. Movimentos apontam risco de subnotificação

São Paulo –  Qual é o impacto da pandemia na saúde de quem não tem um teto ou condições de higiene para cumprir as recomendações básicas de prevenção da doença que já matou mais de 126 mil pessoas no Brasil?. A pergunta ainda não ecoou no país em que paira um silêncio a respeito. Desde março, quando todas as autoridades públicas passaram a divulgar diariamente o número de casos confirmados e óbitos, o recorte sobre a população em situação de rua pode estar tão invisibilizado quanto ela. 

A RBA pediu dados sobre o número de casos confirmados e óbitos em decorrência da covid-19, entre essa população, às secretarias de Saúde das cidades com mais de 900 mil habitantes. Segundo especialistas e movimentos, as estatísticas estão centradas em quem está abrigado em acolhimentos e centros temporários. O que pode estar deixando escapar da conta quem vive e dorme nas calçadas e embaixo das marquises das cidades.

Na cidade do Rio de Janeiro, a demanda foi respondida pela Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos (SMASDH). De acordo com a pasta, desde o início da pandemia, 28 casos foram registrados nas unidades de Centros Provisórios de Acolhimento (CPA). Até esta quinta-feira (3), 14 pessoas estavam em isolamento. A SMASDH também ressalta que não houve ocorrência de mortes entre a população de rua do Rio – a segunda maior do país. No ano passado, a Defensoria Pública do Estado estimou que pelo menos 15 mil pessoas estavam desabrigadas na capital fluminense.

Em Salvador, a resposta veio por parte da Secretaria Municipal de Promoção Social e Combate à Pobreza (Sempre). Numa população de, no mínimo 14.513 sem-teto, dado indicado pelo projeto Axé do Ministério Público do Estado da Bahia (MPE-BA), em 2017, 13 pessoas assistidas pelas Unidades de Acolhimento Institucional (UAIs) testaram positivo para a covid-19. Nenhum óbito por consequência da contaminação foi registrado, garante a Sempre. 

Na cidade de Brasília, a Secretaria de Saúde do Distrito Federal informou que, entre os dias 27 de abril e 31 de agosto, foram testadas cerca de 885 pessoas abrigadas nos serviços de acolhimento e alojamentos provisórios vinculados à Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes). Desse total, 25 detectaram a covid-19. Também não há registro de mortes entre essa população de rua, calculada, em 2019, em cerca de 3.020 pessoas para todo o Distrito Federal. 

O caso da cidade de São Paulo

Dos municípios que enviaram dados, a cidade de São Paulo é a única com registro de óbitos. 

Até maio, 22 vidas haviam sido perdidas em decorrência da covid-19. Em junho, o número subiu para 28 mortes. Por mais de 40 dias, os equipamentos sociais e o Consultório na Rua,  que fazem o monitoramento epidemiológico, não registraram nenhuma nova morte. Na última semana de agosto, no entanto, mais uma pessoa morreu no Serviço de Assistência Especializada (SAE) Campos Elíseos, região da Luz. Todas as 29 vítimas da covid-19 estavam em Centros Temporários de Acolhimento (CTAs), onde foram diagnosticadas com o vírus e encaminhadas às unidades de saúde. 

De abril a julho, a secretaria indica ainda que 286 pessoas em situação de rua contraíram a covid-19. Epicentro da pandemia com mais de 306 mil casos confirmados e 11.692 óbitos até este sábado (5), a cidade que, antes da pandemia já tinha o maior número de pessoas desabrigadas – 24.344, de acordo com censo da população de rua, mas que pode chegar a, pelo menos, 30 mil, como contestam movimentos – impressiona pelo número de casos inclusive as equipes de enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, médicos, atendentes administrativos e agentes sociais e de saúde que formam o programa do Consultório na Rua. 

Leia mais: Programa de saúde para população em situação de rua completa 15 anos

“Tivemos mortes, mas nós imaginávamos que seria muito mais, até 10 vezes o que está tendo”, pontua a assistente social e terapeuta sistêmica, Marta Regina Marques Akiyama, coordenadora do CnR do Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto (Bompar). 

Invisíveis e subnotificados 

A reportagem procurou por representantes do Fórum de Assistência Social (FAS), a Rede Rua, a Pastoral do Povo de Rua e o Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) pedindo uma avaliação sobre os dados. Para eles, se a taxa de contágio não acompanha o índice da população no geral, há então um outro padrão que se repete: a subnotificação. 

“É uma questão bem sensível, especialmente neste contexto em que elas estão muito vulneráveis, mas a gente não consegue provar. A impressão que temos é que, nas ruas, as pessoas ficam mais vulneráveis. Elas não conseguem fazer o isolamento social, em muitos casos ficam aglomeradas e têm condições de acesso a higiene muito precárias. Mas não é o que os dados mostram porque estão subestimados. E não conseguimos quantificar”, contesta a coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) Laura Cavalcanti Salatino.

Laura ainda se lembra de uma das primeiras aulas na instituição de ensino jurídico em que um professor comentava que a população em situação de rua só era registrada quando havia atestado de óbito. “Senão você não contabiliza essas pessoas de jeito nenhum”, relembra a coordenadora.

Olhando os dados

Mas a invisibilidade histórica pode ter se agravado na maior emergência sanitária do último século. Pelo país, o cálculo sobre o número de pessoas em situação de rua infectadas pelo novo coronavírus tem como base os equipamentos sociais de acolhimento. Em São Paulo, por exemplo, a relação parte de duas estruturas criadas exclusivamente para o tratamento da doença, o Clube Escola Pelezão, na Lapa, zona oeste da capital paulista, e um centro na Vila Mariana, zona sul da capital. Ambos monitorados pelas equipes do Consultório na Rua. 

Uma pesquisa censitária da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) de 2015, contudo, revela que mais 70% dos sem-teto que frequentam CTAs acessam a saúde por meio da Assistência Médica Ambulatorial (AMA) ou da Unidade Básica de Saúde (UBS). Assim como 60% das pessoas que estavam em situação de calçada. Apenas 10% disseram acessar a saúde pelo Consultório na Rua.

“Eles (do Estado) partem do pressuposto de que todo mundo em situação de rua é necessariamente atendido pelo Consultório na Rua. E isso não é uma realidade, especialmente nos lugares onde essa população está concentrada, mas não tem tantas ou nenhuma equipe. As pessoas vão acessar outros equipamentos de saúde. E neles não tem nenhum tipo de diferenciação ou notificação de que se trata de uma pessoa em situação de rua. Se a gente olhar para os dados das UBS e dos equipamentos gerais, eles não estão notificando quais pessoas contaminadas estão em situação de rua ou não”, explica Laura. 

O Consultório na Rua

O risco de subnotificação, segundo a coordenadora do CnR, já pautou algumas das discussões das equipes de saúde do programa. Mas a hipótese, ao final, vem sendo afastada. Isso porque houve uma expansão das 18 equipes que, antes da pandemia, acompanhavam 10.550 pessoas cadastradas. Hoje, são 26, garante a secretaria. O número de profissionais também teria aumentado de 339 para 595. 

Marta aponta que, desde março, as equipes do programa começaram a atender também onde antes não se tinha acompanhamento, embora houvesse população em situação de rua, principalmente nos extremos da cidade como Jaçanã, Brasilândia, e Cidade Tiradentes. Os atendimentos diários passaram de 917 para 1.677. E mais de cinco mil testes foram realizados.

“A equipe continuou indo às ruas para fazer o acompanhamento. E uma outra parte da equipe foi a esses equipamentos sociais para fazer a busca ativa. E a nossa ficha pergunta se a pessoa está em situação de rua, se está em equipamento social ou se é ocupação. Tem diagnósticos de vários tipos de moradia”, atesta a coordenadora do Consultório na Rua. 

“Não estou afirmando que não há subnotificação, mas nós já conversamos muito sobre isso, eu e os interlocutores, junto com as equipes. E chegamos à conclusão de que não há essa subnotificação por conta desse raio-x que é feito dentro dessa ficha”, acrescenta.

Secretária diz que dados não são confiáveis 

Mas a preocupação dos movimentos continua sendo com os casos que não chegam pelo Consultório na Rua. Integrante do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua, a Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama só vem conseguindo os dados referentes à saúde dessa população frente à covid-19 por meio do Comitê PopRua. Em paralelo, já foram quase 70 pedidos de Lei de Acesso à Informação (LAI). Um encaminhado ao Ministério Público, outros dois aos ministérios da Cidadania e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e todos os demais à prefeitura de São Paulo. 

Em um deles, a contradição dos dados foi confirmada pelo próprio secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido dos Santos. O projeto de extensão da USP questionava sobre o preenchimento do campo logradouro com a informação “em situação de rua”. A resposta, datada do início de junho, e assinada pelo secretário, descrevia que “o Sistema de Informação de Vigilância da Gripe (SIVEP-Gripe) o campo ‘logradouro’ possui (17) dezessete registros no qual o campo logradouro contém menção à situação de rua ou área livre”. 

“Já no Sistema e-SUS VE”, prossegue em nota, “foram localizados 33 (trinta e três) registros com menção à “situação de rua”, ou “sem residência fixa” ou “área livre”. Contudo, o campo ‘logradouro’, disponível em ambos os bancos, é um campo aberto que não tem padronização para esse tipo de informação; não é de preenchimento obrigatório e, muitas vezes, é preenchido com o endereço do local no qual o morador em situação de rua permanece ou do serviço de referência (centro de acolhimento ou outro serviço que o munícipe informe), assim, não é um campo confiável para esse tipo de informação”, admitiu o secretário. 

“A ficha de preenchimento não tem uma padronização que permita à gente identificar quantas pessoas em situação de rua foram contaminadas ou vieram a óbitos. E por isso só conseguimos os dados se olharmos para os equipamentos que são específicos para a população de rua”, lamenta a coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama. 

Sem dados, sem políticas

Sem os dados, acumulam-se dúvidas. “A gente não consegue pensar política. Não sabemos quantas pessoas em situação de rua estão contaminadas, se elas estão mais ou menos vulneráveis ao vírus. Ou se têm para onde ir, se há encaminhamento. Não tem como discutir política pública se não conseguirmos saber quais são as deficiências. Elas têm muito a ver com os dados”, reitera Laura.

A Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama se reuniu na última segunda-feira (31) com o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e alguns deputados para demandar a necessidade de padronização de preenchimento do formulários. De acordo com a coordenadora pedagógica, movimentos sociais de outros estados também levantaram a questão, a importância de que o campo logradouro registre “em situação de rua”. 

Procurado, o Ministério da Saúde não apresentou nenhum dado ou controle sobre os casos de infecção e óbito entre essa população. Mas confirmou que os formulários epidemiológicos da covid-19 permitem que o campo endereço seja preenchido como “pessoa em situação de rua”. “Porém”, ressaltou a pasta em nota, “os dados são computados pelos municípios”. 

Até março deste ano, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estimava que o Brasil teria perto de 222 mil pessoas em situação de rua. Invisíveis no censo nacional desde 2008, os sem-teto também parecem não contar na régua que mede a dimensão da pandemia no país. 

Marcelo Camargo/EBC
Subnotificação coloca em risco políticas públicas. “Não tem como discutir política pública se a gente não consegue saber quais são as deficiências”, aponta Laura Salatino

Maior que a subnotificação 

Psicólogo sanitarista e pesquisador do Núcleo de Pesquisa sobre População em Situação de Rua da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Brasília, Marcelo Pedra, observa, no entanto, que não há só uma subnotificação. O problema, de acordo com ele, é ainda mais complexo. Pedra acompanha um plano de ação construído pela Fiocruz com as secretarias de Saúde e Desenvolvimento Social do Distrito Federal, e os movimentos sociais. O grupo tem hoje aproximadamente 30 residentes de Medicina da Família e Comunidade e profissionais da Atenção Primária. Além de residentes de Gestão em Saúde e Serviço de Saúde trabalhando com as equipes de Consultório na Rua e com os abrigos diretamente. 

É com base nesse trabalho e a partir dos relatos de outros profissionais em diferentes cidades que o pesquisador também observa que têm sido baixos os casos de covid-19, o que surpreende, e revela a importância de maiores estudos sobre o caso.  

“Tem algo que é o baixo cadastramento das pessoas, de uma maneira geral, não só com a população em situação de rua, que vai sofrer várias camadas de invisibilidade. Isso acontece porque, para se notificar que ‘Marcelo teve covid-19 ‘, ele precisa estar no prontuário, e muitas vezes não está. Assim, por consequência, temos uma baixa notificação. Mas há algo ainda mais grave, não conseguimos no Sistema Único de Saúde (SUS) dar o valor de uso suficiente para a informação em saúde”, destaca.

“Há vários processos da população em situação de rua, que são acompanhadas por equipes públicas, mas que não estão no Cadastro Único da Assistência Social, por exemplo, e não tem Bolsa Família.” 

Outras mortes 

O quadro todo se agrava porque a crise sanitária vem se provando também humanitária. Por todo o país, os pesquisadores também percebem que um número maior de pessoas e famílias são empurradas às ruas, seja pela crise econômica e falta de auxílio, que levou embora os empregos de muitos, ou por despejos e reintegrações de posse. 

“Aumentou e é um dado muito triste. E nós acreditamos que vai aumentar muito mais porque a vulnerabilidade e a pobreza também aumentaram”, destacou a coordenadora do Consultório na Rua do Bompar. E a vida nas ruas, que dá a falsa imunidade ao novo coronavírus, é a mesma que leva ao desenvolvimento de uma série de outras doenças. 

“As pessoas em situação de rua continuam morrendo. Talvez não tenha um número alarmante de morte por covid-19, mas elas continuam morrendo por uma falta maior ainda de assistência por essa invisibilidade”, enfatiza a integrante do Grupo Temático (GT) Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) Elaine Oliveira Soares, enfermeira e coordenadora da Política de Saúde da População Negra da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre. 

Olha quem morre e veja quem mata

Ainda em relação aos formulários, a Abrasco e outras entidades de saúde pressionam pela inclusão do dado raça/cor nos formulários epidemiológicos da covid-19. Elaine avalia que a falta de dados expõe o que o filósofo camaronês Achille Mbembe teorizou como “necropolítica”. 

diferentes grupos sem-teto espalhados nas cidades. Mas a rua tem sobretudo uma cor, a negra, que em São Paulo, por exemplo, correspondia a 70% de toda a população em situação de rua até antes da pandemia. “Há um silêncio, quem fala das pessoas em situação de rua?”, questiona a integrante do GT da Abrasco.

“O Estado, além de não cuidar, autoriza que essas pessoas que estão em situação de rua possam ser mortas, seja pela pandemia da covid-19 ou pelo assassinato por pessoas que querem fazer a limpeza social das ruas. Então há uma negligência e uma autorização. Isso é a necropolítica que Mbembe diz bem sobre como ela lida com quem deve viver e quem deve morrer”, critica Elaine.

O que acontece nas ruas, nas palavras do pesquisador da Fiocruz Brasília, nada mais é do que um sintoma dessas questões estruturais da sociedade brasileira. “A ideia de criar uma rede de proteção e pertencimento permite a possibilidade de termos uma relação mais rica, plural e menos empobrecida. Se tenho isso, a covid-19 passa a fazer sentido (para o povo de rua), porque perder saúde terá o seu valor.”