Agronegócio x agroecologia

MST: despejo em Campo do Meio reflete a ‘vergonha’ do campo brasileiro

Reintegração de posse, que desalojou 14 famílias sem-terra, favoreceu empresário que acumula dívida de mais de R$ 400 milhões com a União. Usina faliu, em 1996, sem pagar direitos trabalhistas

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De acordo com Silvio Netto, há no estado um "conluio" pelos interesses do agronegócio, com apoio de Romeu Zema (Novo)

São Paulo – Palco de violenta ação da Polícia Militar de Minas Gerais, que na sexta-feira (14) despejou 14 famílias sem-terra, o Quilombo Campo Grande, localizado em Campo do Meio, no sul do estado, marca um conflito que, na verdade, é nacional: o antagonismo entre um projeto de reforma agrária popular, da agricultura familiar e camponesa, contra o latifúndio e o agronegócio.

“Já se vão 22 anos desse conflito e, pela primeira vez, – olha a contradição –,  estamos conseguindo discutir essa disputa de projetos ali”, aponta o integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) Silvio Netto. Os atingidos pela reintegração de posse ocupam, desde 1998, a área da Usina Ariadnópolis Açúcar e Álcool. Administrada pela Companhia Agropecuária Irmãos Azevedo (Capia), a usina faliu, dois anos antes, sem pagar os direitos trabalhistas de seus funcionários. 

Sem dinheiro e trabalho, os ex-funcionários se uniram ao MST e ocuparam a fazenda. A área, também abandonada pelos proprietários, foi revitalizada pelo movimento que, ao longo das últimas décadas, garantiu uma transição agroecológica que aboliu o uso de agrotóxicos. Em 2018, matéria da Repórter Brasil mostrou que, à época, cada família tinha, em média, oito hectares de terra. No terreno ainda é plantado o café orgânico Guaií – um dos principais produtos da agricultura familiar, comercializado também em São Paulo e no Rio Grande do Sul. 

Disputas constantes

Desde que ocuparam a fazenda, os trabalhadores rurais estão em constante disputa pela terra com o empresário Jovane de Souza Moreira, que em 2011 entrou na Justiça com uma ação de reintegração de posse. Ele tenta reativar a massa falida para cumprir acordo comercial firmado com a Jodil Agropecuária e Participações Ltda. O site De Olho nos Ruralistas identificou que, em 2016, o processo ganhou força após a homologação do plano de recuperação judicial da Capia.

Na ação judicial, ele pede o arrendamento de parte dos 3.195 hectares da fazenda para a Jodil, administrada por João Faria da Silva, considerado um dos maiores produtores de café do país. O contrato de parceria seria válido até 2023. A usina falida, no entanto, ainda consta com uma dívida ativa de mais de R$ 406 milhões. Com base em dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o Brasil de Fato mostrou que há R$ 1,2 milhão em multas trabalhistas. E um valor que ultrapassa R$ 1,5 milhão em relação ao não pagamento do FGTS.

“Durante muito tempo, a gente não conseguiu traduzir para as pessoas a dimensão da vergonha que é a antiga Usina Ariadnópolis, a dimensão do conluio que existe na região e nacionalmente para enfrentar a construção do nosso projeto de reforma agrária popular. A antiga Usina Ariadnópolis é a cara da vergonha do campo brasileiro”, destaca o dirigente do MST. 

Conluio com Zema

Em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, Netto ressalta que a usina, criada em 1908, recebeu diversos aportes estatais. E chegou ao seu auge na década de 1970, por meio de investimentos do Programa Nacional do Álcool (Proálcool) na ditadura civil-militar. Quando o território foi abandonado, assim como os trabalhadores, a meta do movimento foi garantir a sobrevivência das famílias com a ocupação, apostando na terra para reaver os direitos perdidos. Até que a união se transformou em um “projeto de vida, coletivo”, que hoje abriga mais de 450 famílias.

“A partir daí passamos a incomodar outros setores”, lembra. “Nós conseguimos com toda a força política travar essa disputa. Mas, nesse momento, entra um terceiro ator, que é o governador (Romeu) Zema. Ele atua colocando o estado a serviço da destruição do nosso projeto que vem sendo construído há 22 anos. Pela primeira vez, você consegue desvendar todo esse conluio. Isso não acontece só em Campo do Meio, em Minas Gerais, está acontecendo pelo Brasil afora, é a disputa que enfrentamos no campo brasileiro”, contesta Netto.

Chefe do Executivo eleito pelo Novo, Zema venceu o pleito de 2018 com um discurso “antipolítica”, afirmando-se como um “administrador”. Na ação policial que lançou bombas de gás lacrimogêneo contra os sem-terra, destruiu a escola Eduardo Galeano e as plantações das famílias, o governador expôs, segundo o integrante do MST, que “não só é político, como é da pior política, da política de morte, genocida. O governador Zema é uma cópia mineira do governo Bolsonaro”, afirma. 

Resistência e exemplo

Apesar da investida contra o movimento, os trabalhadores rurais acolhem as famílias despejadas em meio à pandemia. E cobram do governo exames em massa para detecção da covid-19 na população que resistiu, quase 60 horas, contra a reintegração de posse. De acordo com Netto, as famílias foram expostas ao risco da infecção, assim como os policiais, que atendiam ordens do governador. 

O integrante do MST ressalta que as marcas de violência só não foram maiores que a resistência dos sem-terra. “Esse processo todo que estamos enfrentando nos deixa muitos exemplos de qual é o caminho de resistência para o povo brasileiro,”

Ouça a entrevista

Redação: Clara Assunção


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