Pandemia

Líderes Xavante que recusaram missão militar são perseguidos em Mato Grosso

Procurador do MPF-MT quer que lideranças sejam responsabilizadas por possíveis vítimas da covid-19, após recusarem ação militar

Reprodução autorizada/Fonte preservada
Reprodução autorizada/Fonte preservada
Caciques Xavantes determinaram o isolamento da Terra Indígena Marãiwatsédé para conter a pandemia

São Paulo – O procurador da República Everton Pereira Aguiar Araújo, do Ministério Público Federal de Mato Grosso (MPF-MT), quer responsabilizar lideranças indígenas que se recusaram a receber a Missão Xavante por mortes causadas pela pandemia de coronavírus. Os indígenas, contudo, contestam métodos aplicados na missão, como a distribuição de hidroxicloroquina, medicamento sem eficiência comprovada no combate à doença. Além da demora no envio de ajuda.

Ele quer que os indígenas produzam um documento informando os motivos pelos quais não querem receber a missão, acompanhado de cópias dos documentos de identidade das lideranças. “Fique registrado que este procedimento é necessário para que os responsáveis pelo documento assumam sua responsabilidade pelas consequências que poderão vir por impedirem as ações de saúde do governo federal, inclusive eventos de morte de parentes e amigos”, cobra o procurador em ofício enviado à Fundação Nacional do Índio (Funai).

Cacique Damião

Um dos alvos dessa ação é o cacique geral da Terra Indígena Marãiwatsédé, Damião Paridzané. No início de maio, um de seus netos, de 8 meses, morreu com a covid-19, no Hospital Regional Paulo Alemão, no município de Água Boa, nordeste do estado.

O cacique chegou a percorrer unidades de saúde e hospitais da região em busca de atendimento especializado. Esse foi considerado o primeiro óbito registrado na etnia. Até o início de julho, os Xavante já acumulavam 138 casos confirmados, com 21 mortes, sendo o terceiro grupo indígena mais afetado. Atualmente, são pelo menos 36 óbitos e mais de 200 casos.

A missão

A primeira missão Xavante, contudo, chegou na região do Alto Xingu apenas em 27 de julho. Coordenada pelo ministério da Defesa, também participam a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) – e a própria Funai. A operação, no entanto, só foi montada após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou, em 8 de julho, que o governo federal prestasse assistência aos indígenas.

Contudo, diante da omissão até este momento, líderes de diversas aldeias determinaram o fechamento dos territórios, como forma de evitar a disseminação da covid-19. Esse é o principal motivo da recusa à missão. A decisão foi, inclusive, oficializada em manifesto assinado pelo cacique Damião Paridzané e outras lideranças do território. O documento foi publicado pelo jornal cuiabano Boamídia.

“Hoje tivemos última reunião da comunidade com os demais caciques das aldeias do território Marãiwatsédé, pois as maiorias não aceitar realizarem as ações de atendimento sobre na linha de combate de covid-19 além de outros atendimentos como ginecologistas, clínica geral e pediatria, por conta das falsidades nas rede sociais falando que essa missão vão acabar com xavantes onde irão atendidos. Por motivo não aceitamos a essa missão”, diz o manifesto.

Militarização

De acordo com uma especialista na questão indigenista, que preferiu não se identificar, a Missão Xavante representa uma militarização das políticas de assistência à saúde indígena. Em entrevista a Marilu Cabañas, para o Jornal Brasil Atual, nesta quarta-feira (12), ela diz que as ações desrespeitam o direito à autodeterminação dos povos e tentam forçar a aplicação de métodos da medicina ocidental, ignorando os conhecimentos tradicionais dos povos indígenas.

Para ela, a ação do MPF-MT é uma forma de “perseguição política” e “criminalização” das lideranças indígenas que se recusaram a receber a missão. E colaboraria para o acirramento das tensões na região.

“Recentemente ocorreram vários casos de racismo, como se os indígenas fossem os responsáveis pela disseminação da covid-19 na região. Esse documento se alinha com esse tipo de perseguição. De modo nenhum poderia ser a postura do MPF”, afirmou a especialista.

Ela afirma que a Sesai tinha um longo histórico de diálogo com as lideranças indígenas para a aplicação de políticas de saúde. Mas agora, em função da nomeação de militares em postos-chave da Sesai e da Funai, os indígenas não tem sido ouvido a respeito das decisões tomadas.

Disputas

Essa “militarização”, segundo a especialista, também está relacionada a disputas envolvendo esses territórios. “Nesse momento, o que está acontecendo é a militarização das terras indígenas, travestida de combate à pandemia”. Outro exemplo, segundo ela, é que a primeira missão desse tipo foi realizada nas terras Yanomamis, na região leste de Roraima. Nesta região, o conflito se dá em função da atuação da atividade ilegal do garimpo. Entretanto, o governo Bolsonaro tem reafirmado a intenção de legalizar essas atividades de exploração mineral, inclusive nas terras indígenas.

No Alto Xingu, a disputa é pelas terras que foram reocupadas pelos indígenas. A Terra Indígena Marãiwatsédé, por exemplo, é um caso único de retomada dos territórios pelos indígenas. Ocupantes históricos daquela área, eles foram removidos pelas políticas de colonização aplicadas durante a ditadura. Esse território foi entregue ao povo Xavante em dezembro de 2012, após decisão da Justiça que determinou a demolição da vila Estrela do Araguaia.

Assista à entrevista

Redação: Tiago Pereira – Edição: Helder Lima