Prejuízo público

Projeto de Doria extingue serviços essenciais ao povo e que não oneram estado

Em audiência pública, servidores denunciam governo do estado e se organizam para resistir ao desmonte de serviços de saúde, moradia popular, transporte e preservação do ambiente

Divulgação
Divulgação
Empresas públicas prestam serviço à população mesmo com poucos recursos. Não representam ônus ao estado e em alguns casos até fazem superávit

São Paulo – Moradia e remédio popular, reabilitação para pacientes com câncer, controle de doenças endêmicas, regularização de terras, transporte público metropolitano, preservação ambiental. Os moradores do estado de São Paulo correm risco sério de ficar sem uma série de serviços essenciais. O Projeto de Lei 529, do governador João Doria (PSDB), extingue 10 autarquias, fundações e empresas públicas a pretexto de equilibrar as contas públicas. No seu lugar, empresas privadas assumiriam os serviços, “poupando” recursos públicos necessários a outras áreas neste momento.

O projeto foi tema de audiência pública virtual da Assembleia Legislativa, realizada na manhã da sexta-feira (14). Centenas de servidores das empresas ameaçadas de extinção participaram das duas horas e meia de audiência proposta pela deputada estadual Beth Sahão (PT). Em todas as histórias relatadas, uma unanimidade: as empresas em questão representam investimento ínfimo do orçamento do estado. Muitas delas sofrem há anos com a falta de recursos, de concursos públicos e prestam atendimento a duras penas graças aos servidores. Mas não representam ônus aos cofres públicos.

Veneno contra o Estado

“Isso é muito importante”, diz a deputada. “Essas despesas, se forem cortadas, não significarão praticamente nada em termos de recursos para o estado.” Para ela, o governo Doria usa a pandemia como desculpa para “enxugar” o estado, alegando que haverá queda de receita. “Assim, transferem para o setor privado e extinguem empresas públicas.”

Para o deputado Alencar Santana (PT), que falou aos servidores na audiência pública virtual, o projeto de Doria não difere em nada do governo nacional. “Ele fingiu ser diferente, mas é igual. Mostrando veneno contra o Estado, contra o serviço público. Esse projeto é literalmente um crime”, classifica. “Tem sentido idêntico ao que Bolsonaro disse quando foi a primeira vez aos Estados Unidos. Disse que iriam desconstruir o Estado brasileiro. Isso está acontecendo em nível nacional acabando com as empresas públicas com o meio ambiente. Doria também está fazendo isso, destruindo o estado.”

Alencar destaca, ainda, os interesses econômicos, privatistas por trás do projeto de Doria. “Não constroem nada, querem o Estado para eles. Querem pegar o que o Estado investiu para ficar para eles (as empresas privadas). Temos de barrar esse projeto no seu conjunto. É o momento de as pessoas verem a necessidade de mais Estado. Temos de traduzir isso para que a gente ganhe esse debate.”

Saúde no alvo

A Fundação para o Remédio Popular (Furp) é uma das autarquias em risco. Fabrica medicamentos para o estado desde 1974 e vem sofrendo um desmonte acentuado desde o ano passado. “Toda a direção da fundação está ligada ao governador João Doria”, relatou na audiência a funcionária Ana Claudia Canton. “Uma das forças que teríamos como fabricantes de medicamentos nessa pandemia foi coibida pelo Doria. Álcool gel e 70% foram produzidos e ficaram no estoque porque ele proibiu a distribuição”, denuncia.

Também está no alvo do projeto de Doria a Superintendência de Controle de Endemias no estado, a Sucen. “É uma instituição de controle de vírus e pesquisa científica no âmbito da saúde. Tem pouco mais de mil servidores, cerca de 40 pesquisadores científicos”, informou o funcionário de carreira Horácio Santana Teles. “Instalada como autarquia autônoma desde 1975 é responsável pelo trabalho que municípios não têm condição de fazer”, detalhou, lembrando o trabalho contra a febre amarela no ano passado.

Teles lembra que a pandemia trouxe impacto financeiro importante em todo mundo, mas nenhum país ousou uma medida desse tipo. “Nem o berço do neoliberalismo nos Estados Unidos fez isso. É um projeto sem pé nem cabeça. Destrói as instituições sem dar destino ao patrimônio que é público, sem falar nos recursos humanos. Muitas dessas instituições que estão na berlinda podem ajudar no combate à pandemia.”

Para ele, o governo não olha para o que será necessário lá na frente para restaurar a economia. “Não fazer prevenção em saúde pública é prejuízo financeiro. Querem justificar a extinção da Sucen por não fazer nada contra o coronavírus. Mas a Sucen é responsável pelo controle de doenças que são comorbidades importantes. Há um desconhecimento do governo.”

Fundação Oncocentro

Outra na lista do projeto de extinção é a Fundação Oncocentro (Fosp), responsável pela reabilitação de pessoas com câncer de cabeça e pescoço, um trabalho extremamente complexo, explica a dentista Andrea Alves de Sousa. “São mais de 5 mil atendimentos ao ano, entregamos quase 700 próteses ao ano. São mais de 150 pacientes novos por ano. Pessoas vão sobreviver ao câncer, mas não serão reabilitadas?”, questiona a servidora da Fosp. “É condenar essas pessoas ao limbo, já que sem a reabilitação elas não se apresentam nem dentro da própria casa, não podem comer com a família, não podem viver em sociedade. Esse trabalho de reintegração é fundamental. O governador está querendo que deixemos essas pessoas mutiladas. Que vida é essa?”

Andrea lembra que no ano passado os pacientes foram aos gabinetes dos deputados defender a manutenção da Furp e da fundação. “Antes tínhamos esse apelo presencial. E agora vamos fazer como?! Espero que dê pra entender isso. As pessoas não conhecem nosso trabalho.”

O custo da Fundação Oncocentro, informou o psicólogo Paulo Cirillo, representa 0,05% do orçamento da Secretaria de Estado de Saúde, o que corresponde a R$ 400 mil ao mês. Por outro lado, é um serviço muito caro na iniciativa privada. “Nós não entendemos por que o estado quer acabar com uma fundação que não gera praticamente despesa”, ressaltou o servidor.

Zoológico

A bióloga Angélica Midori Sugieda, da Fundação Zoológico, lembrou que o parque estadual, de 61 anos de existência, faz muito mais do que a exposição dos bichos. “São 2 mil animais, um terço deles está em exposição, os outros estão dentro de programas de conservação. Principalmente de reprodução e soltura na natureza.”

Todo os anos, o zoológico de São Paulo recebe em torno de 1,3 milhão de visitantes e a bilheteria arrecada cerca de R$ 33 milhões. “Isso não justifica dizer que geramos despesa”, frisa a servidora, lembrando que desde 2018 uma parte desse valor é paga ao governo do estado. Ela ressalta que algo em torno de 24% dos visitantes entram no zoo pelo programa de gratuidade. Pesquisas apontam entre 95% e 100% de satisfação do público.

Além do parque, a medida de Doria afeta 23 espécies ameaçadas de extinção que são preservadas pelo trabalho da fundação – como mico-leão, arara, lobo-guará, onça-pintada Desde o começo deste ano, a fundação é responsável pela gestão dos animais que chegam ao centro que fica no Parque do Tietê. São reabilitados e voltam para a natureza. Já foram resgatados 130 mil animais.

“Fomos reconhecidos em 2018 como instituto científico e tecnológico de São Paulo por conta de todas as pesquisas que desenvolvemos aqui”, diz a bióloga. A Fundação Zoo mantém ainda um programa de mestrado em parceria com a Universidade Federal de São Carlos que já formou 87 mestrandos. E um programa de educação ambiental que vai para além dos muros do enorme parque que fica na zona sul de São Paulo, abrangendo a comunidade do entorno, escola.

Tudo pode se perder

A Fundação Zoológico, em risco de extinção pelo projeto de Doria, consegue fazer ainda a gestão de todo o sistema do parque, com tratamento próprio da água e esgoto, economizando R$ 1,3 milhão aos cofres públicos. “Todos esses serviços podem ser perder”, lamenta Andrea. “A concessão só prevê o parque. Com a extinção, não se sabe como vão ficar essas atividades, inclusive o núcleo de pesquisa.” Ela lembra que já havia um projeto de concessão feito com a Fipe e que custou caro para o estado. “Não se sabe se também será perdido.”

Claudio de Moura, do Instituto Florestal, não conseguia esconder a tristeza diante do projeto de Doria. O IF é originário do Serviço Florestal e tem mais de 130 anos de existência. “Trabalha com cuidado a questão do desmatamento. São quase 50 unidades de conservação gerenciadas”, descreve o servidor, um dos 620 funcionários do IF. “Tem pesquisas em fauna, ecologia, hidrologia. É uma loucura essa notícia da extinção”, diz. “Seriam R$ 20 milhões ano juntando IF, Instituto de Geografia, e Instituto Botânico”, afirma. “Isso para o governo de São Paulo é ínfimo.”

Transporte e moradia

A Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU) gerencia, fiscaliza e regulariza o transporte público nas regiões metropolitanas do estado. “Não dá custo para o estado”, explicou o servidor Felipe Bugarin. “Os operadores de transporte pagam taxas. A EMTU é autossustentável e superavitária.”

Os 500 funcionários não sabem se seus empregos estarão ali, se permanecerão no mesmo local de trabalho caso o projeto seja aprovado. Dentre outros serviços, esses trabalhadores são responsáveis pelo passe escolar e pelo passe livre para mais de 200 mil estudantes. Também o atendimento a passageiros especiais. “Quem vai assumir, quem vai executar, quem vai fiscalizar”, questiona Bugarin. “Queremos conversar com especialistas. A EMTU é de 1977 e está em cinco regiões. Era para estar no estado todo. Serviços essenciais à população serão precarizados”, alerta.

A indignação era a mesma na voz de Alberto, funcionário da Companhia de Desenvolvimento Habitacional Urbano (CDHU), outra empresa superavitária que pode ser extinta por Doria. São 313 mil contratos ativos, com arrecadação de R$ 740 milhões em 2019. “A CDHU não depende dos cofres públicos para manter suas atividades”, afirma o servidor.

Alberto rebate ainda as alegações de que as atividades poderão ser repassadas para a Secretaria de Habitação. “Isso não é real porque toda infraestrutura sempre foi feita pelos empregados da CDHU. E as secretarias não podem comercializar moradias. A CDHU foi criada justamente para isso. Tem aporte de recursos próprios para isso, tem outra lógica, outra configuração.”

A empresa, segundo o servidor, tem uma carteira de mais de 150 mil unidades. “Não é uma empresa que gera despesa. Gera lucro, renda, patrimônio para que o estado possa investir em habitação. São mais de mil empregados entre funcionários e terceirizados. Uma estrutura que poderia ser mantida sem custo para o estado. Extinguir a CDHU para fazer economia não se justifica.”

Conflitos podem encarecer comida

Para a deputada Beth Sahão, o estado de São Paulo tem muita terra para fazer reforma agrária, atender pequenos produtores, agricultores familiares. São eles os responsáveis por 70% da comida que chega à mesa dos brasileiros. “Com a extinção do Itesp, o governo sinaliza que é mais uma área em que ele não quer fazer nada”, avalia a parlamentar.

A Fundação Instituto de Terras de São Paulo está na lista de cortes de Doria, apesar de prestar assistência técnica para 7.133 famílias distribuídas em 140 assentamentos de 40 municípios do estado. Somente no Pontal do Paranapanema, extremo oeste do estado, são 98 assentamentos e 4.913 famílias.

“Nosso orçamento é de R$ 60 milhões de reais. E quer tirar uma empresa cujo desenvolvimento fez com que os assentados produzissem mais de R$ 300 milhões em alimentos”, compara Robson Ivani de Oliveira, do Itesp. “Se extinguir, o Pontal vai virar um imenso canavial. É isso que os usineiros querem.” Segundo Oliveira, a área está sobre dois lençóis freáticos que terão suas águas contaminadas. “Infelizmente estamos assim”, denuncia.

Violência no campo

José Luiz Salles Santos, engenheiro no Itesp desde 1992 – a fundação foi criada em 1991 – destaca a responsabilidade de regularizar terras devolutas, fazer a entrega de títulos, auxiliar pequenos posseiros que não têm condição de contratar engenheiro para legitimar o imóvel. Para ele, extinguir o Itesp vai gerar ainda mais conflitos agrários graves.

“O estado já não cumpre seu papel de promover a política de regularização fundiária e o Itesp faz o que pode. Mas são órgãos que vêm sendo sufocados. E agora vem com esse projeto, como se fosse resolver o déficit orçamentário em São Paulo”, critica. “O Itesp gera receitas que vão para o Tesouro. Falar em despesa com a regularização fundiária é absurdo, isso é investimento. Temos de discutir uma proposta de preservar esses órgãos para que possamos continuar fazendo nosso trabalho.”

A deputada Beth Sahão diz que o estado prevê queda na receita da ordem de R$ 22 bilhões de reais. “Só que o governo poderia lidar com isso de outra forma. Por exemplo, nos mais de R$ 40 bilhões que concede de renúncia fiscal. Ou seja, tem como resolver. É só deixar de transferir recursos públicos para o setor privado.”