equívoco cruel

Quando crianças, foram tiradas dos pais. Agora lutam por justiça

De 1923 a 1986, milhares delas foram levadas a força para longe de seus pais em tratamento de hanseníase. Nos educandários, sofreram todo tipo de violência

Acervo Jaime Prado
Acervo Jaime Prado
Termo usado por Bolsonaro remete a tempos cruéis, quando filhos saudáveis de pais internados compulsoriamente eram levados ainda bebês

São Paulo – A exemplo dos três irmãos mais velhos, o funcionário público José Ademilson da Rocha Picanço, de Marituba, região metropolitana do Pará, foi retirado dos pais internados compulsoriamente em uma colônia para tratamento da hanseníase e levado para um internato de crianças. Não havia nem completado um ano. A irmã, mais velha de todos os filhos, havia sido adotada por um casal conhecido e escapou de ser levada para um educandário, que recebia as meninas. Edimilson, como é mais conhecido, só saiu de lá aos 8 anos. Foi quando soube que dois dos garotos com quem convivia eram seus irmãos. Mais uma monstruosidade na lista que inclui maus-tratos, violência física e psicológica.

Aqueles oito anos foram também um tempo de travessuras possíveis graças ao desleixo dos inspetores e responsáveis. Entre elas, uma fuga de mais de 50 meninos, de diversas idades, liderada por Edimilson. Foram todos para um aeroporto, que ficava perto do internato e invadiram a pista dos aviões. Além do perigo que correram, ficaram na lembrança as lâmpadas de sinalização da pista quebradas com pedradas. Foram todos apreendidos pelos bombeiros e devolvidos.

Violações

Bem mais tarde, quando já era uma das lideranças do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan), conheceu histórias de outras infâncias dilaceradas, muitas até mais tristes, sofridas e assustadoras abafadas em outros internatos e educandários Brasil a fora. Abuso sexual, trabalhos forçados até tortura. Há quem relatou ter sido arrancado da cama ainda de madrugada e levada para um porão, onde era despida e mergulhada de cabeça para baixo, os pés amarrados, em um imenso tonel com água. Tamanha violência não foi uma vez só.

Edimilson ficou longe dos pais durante a maior parte da sua infância. Quando foi devolvido à mãe pelas autoridades, voltou para a Colônia de Marituba, onde nasceu. Mas sofreu mais um duro golpe. Cinco meses depois, ela adoeceu e morreu. Na sua inocência de criança, ele chegou a imaginar que a mesa arrumada no meio da casa era para uma festa de aniversário. Na verdade, era o caixão.

A família se separou novamente. Cada irmão acabou indo morar na casa de conhecidos, já que o pai se considerava incapaz de cuidar dos filhos. Tamanho sofrimento, que deixou marcas indeléveis em todos eles, foi causado pelo Estado brasileiro. Por meio de uma “política pública de saúde” criada pelo Decreto 16.300, de 1923, e reforçada pela Lei 610/1949, pessoas acometidas pela hanseníase, como os pais de Edimilson, eram isoladas compulsoriamente em colônias pelo então Departamento de Profilaxia da Lepra e da Assistência Social. E portanto, separadas de seus filhos – inclusive os recém nascidos. Embora a legislação de 1949 tenha sido revogada pela Lei 5.511, de 1968, esses isolamentos foram mantidos como política sanitária até meados de 1986.

Bulliyng e estigma

“Na escola sofríamos muito bulliyng por conta do estigma da doença de nossos pais. Por isso meus irmãos não conseguiram seguir os estudos. Cheguei ao ensino médio com muita determinação e consegui ingressar em uma faculdade, mas faltou condições psicológicas e desisti”, diz Edimilson. “Sei que meus pais sofreram mais, porque ficaram também com as sequelas físicas, enquanto que nós, com as psicológicas.”

Na carta, mãe internada em colônia pede notícias e foto da filha. (Foto: Reprodução/Morhan)

“Se a gente falava sobre a doença de nossos pais, as pessoas já saíam correndo”, conta a enfermeira aposentada Tereza Marina Das Chagas, 75 anos. Quando era bem pequena, sua mãe perdeu os dedos dos pés. O diagnóstico de Hanseníase foi seguido imediatamente pela internação compulsória na Colônia Itapuan, em Viamão, próximo a Porto Alegre. Marina, como é mais conhecida, foi levada para o Amparo Santa Cruz, na capital gaúcha, e logo em seguida passou a morar com uma família. E seu irmão para o internato Dom Bosco, que recebia apenas meninos.

O reencontro com mãe aconteceu quando Marina tinha por volta de dez anos. Havia o desejo da mãe de levá-la para morar junto na colônia, mas não houve autorização. Com dificuldade de se lembrar exatamente de datas e idades, Marina relata que foi morar com freiras em um sanatório para tuberculosos, onde trabalhava na cozinha. Ali aprendeu a bordar, fazer crochê e foi incentivada a fazer curso de enfermagem. O reencontro com o irmão, falecido há mais de 20 anos, só ocorreu bastante tempo depois.

Ela conta que a mãe, que tinha sido cozinheira em um hotel em São Francisco de Paula, próximo a Gramado, exercia muitas atividades dentro da Colônia, até passar a trabalhar no pavilhão de internos cegos. E chegou a casar, ter outro filho e até deixar o local por um tempo. Nessa época, ela tentou morar com a nova família, mas não se adaptou. E logo depois a mãe teve de retornar para a Colônia.

Reparação

Marina, Edimilson e seus irmãos estão entre as mais de 12 mil pessoas em todo o país que foram separadas de seus pais nos primeiros anos de vida e que lutam por reparação desde 2007. Naquele ano, uma medida provisória do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, convertida na Lei 11.520, reconheceu o isolamento compulsório como crime de violação aos direitos humanos e indenizou pessoas com hanseníase vítimas dessa política de segregação até 1986.

Para Edimilson, não há dinheiro que pague tamanha dor e sofrimento causado pela violenta política higienista implementada pelo Estado em nome da prevenção à Hanseníase mesmo quando já havia tratamento medicamentoso. Desde a década de 1940 já era possível tratar e curar as pessoas em suas próprias casas, mas opção era pela crueldade. “Passei oito anos longe da minha mãe. E quando fui devolvido para ela, já estava muito doente e faleceu. Mas luto por Justiça, para que o Estado brasileiro seja condenado pelo crime cometido”, afirma.

No último dia 6, a relatora especial das Nações Unidas sobre eliminação da discriminação contra pessoas afetadas pela hanseníase, Alice Cruz, destacou, diante do Conselho de Direitos Humanos da organização, que a reintegração dessas pessoas não foi imediata. E ainda existem cerca de 30 colônias, com residentes da geração de pessoas que foram segregadas como resultado da política do Estado, assim como da segunda e terceira gerações.

Ela afirmou ainda que as políticas de segregação do passado continuam a ter impacto na vida das pessoas afetadas pela doença de Hansen e de seus familiares, e denunciou o estigma e violação de direitos civis e políticos. “As violações são de natureza permanente, pois se perpetuam na vida dessas pessoas e de seus filhos que sofrem infinitos traumas e restrições ao gozo de seus direitos sociais, econômicos e culturais.”

“Há relatos de que aproximadamente 16 mil crianças foram separadas de seus pais, que foram afetados pela doença de Hansen, como resultado da política de segregação. Elas foram enviadas para instituições entre os anos 1920 e 1980”, conta a relatora. Para Alice Cruz, há “necessidade urgente de um programa complexo de reparação, que englobe reparações materiais e simbólicas, garantias de não recorrência, um processo de memória e direitos de acesso à informação e reabilitação, dado o envelhecimento desta população”.

Vídeo mostra comentários de relatoria especial da ONU, que pede reparação ao governo

Ação civil

A expectativa é a de que a recomendação influencie favoravelmente a decisão da Justiça em ações movidas pelo Morhan no Brasil. Entre elas, uma ação civil pública, já em fase de recurso e que depende de apreciação do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). A ação pede a responsabilização do Estado brasileiro pela política de isolamento e separação compulsória de filhos separados de pais com hanseníase entre os anos de 1923 e 1986.

Além disso, a publicidade de todos os dados existentes em registros referentes aos filhos separados; pagamento de indenização em prestações mensais; criação e implementação no âmbito do SUS de política pública de atendimento psicológico e psiquiátrico; a adoção da política de erradicação da Hanseníase com ampla divulgação nos meios de comunicação e a criação de cinco centros de memória, um em cada região do Brasil, em homenagem aos filhos separados, além do tombamento dos 29 educandários existentes ainda hoje no país.

No final de 2018, após batalha jurídica em três instâncias, o Superior Tribunal da Justiça (STJ) acolheu ação de 2015, de dois irmãos separados dos pais, pedindo à União indenização por danos morais. E decidiu que o caso configura “um quadro de alienação parental forçada por políticas governamentais equivocadas”. A União deverá indenizar cada irmão em R$ 50 mil. O prazo do governo para pagamento expira em 15 de novembro. Como a decisão transitou em julgado, não cabe mais recurso. O Morhan trabalha para que a decisão seja estendida a todos os filhos prejudicados pela violência da política do Estado.