Prêmio à impunidade

Mudanças na CNH: falta de fiscalização será ‘desastrosa’ para o SUS

Especialistas criticam flexibilização no Código de Trânsito em meio à pandemia. Proposta de Bolsonaro foi aprovada pela Câmara e o risco é de aumento da impunidade e da insegurança

Arquivo EBC
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Afrouxamento na fiscalização agrava cenário já crítico: mais de 60% dos leitos hospitalares do SUS são ocupados por vítimas de acidente de trânsito

São Paulo – A Câmara dos Deputados concluiu, na quarta-feira (24),  a votação do Projeto de Lei (PL) 3.267/2019, que traz mudanças no Código de Trânsito Brasileiro, ampliando a validade da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) para 10 anos. Enviada no ano passado ao Congresso pelo presidente Jair Bolsonaro, a proposta, à época considerada “inaceitável”, segue para o Senado com um texto “melhorado”, mas ainda assim “desastroso”. 

Essa é a avaliação de especialistas que atuam em mobilidade urbana e políticas públicas de segurança no trânsito. Depois de passar por uma comissão especial e ganhar versão substitutiva nas mãos do relator Juscelino Filho (DEM-MA), o PL foi aprovado, mas com parte das 110 emendas rejeitada. 

Pontos que causaram polêmica à época da entrega do projeto, como o fim da cadeirinha infantil obrigatória, foram retirados. O assento não só continua indispensável, como passou a ser uma exigência para crianças com até 10 anos e que ainda não atingiram 1,45 metro de altura. Atualmente, o código especifica o uso da cadeirinha para crianças com até 7,5 anos. A pena para quem descumprir a norma também continua como “infração gravíssima”. 

A realização do exame toxicológico periódico, que Bolsonaro também queria alterar, foi mantida para obtenção e renovação da CNH pelo relator do PL. As duas correções são apontados como positivas pelos especialistas. Mas a maioria dos demais pontos seguem com resistência. Principalmente pelas mudanças nas regras dos pontos para suspensão da CNH. 

Impactos no SUS

O PL dobra a pontuação permitida para quem não cometer infrações gravíssimas. O deputado do DEM estabeleceu uma gradação de 20, 30 ou 40 pontos, durante um ano, a depender da quantidade de infrações gravíssimas. A regra atual pune com suspensão o condutor que atingir 20 pontos, independente do tipo de infração. Pelo texto, esse limite sobe para 40. 

“Do ruim (da comissão), a Câmara deu uma piorada”. O motorista poderá fazer o dobro de infrações, com uma pequena ressalva de que uma infração gravíssima dá uma reduzida. Mas vai para 30, que ainda é muito. Então essa mudança no artigo 261, dos 40 pontos, é muito ruim, praticamente inaceitável. Enquanto tiver isso o projeto não será positivo. E mais um retrocesso gravíssimo no trânsito brasileiro, que já é perigoso, com 30 mil mortos por ano. É um agravante no que já é trágico”, explica o pesquisador em mobilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) Rafael Calabria. 

Ele faz referência ao dado de que mais de 60% dos leitos hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS) são ocupados por vítimas de acidente de trânsito. Em maio do ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) mostrou que mais de 1,6 milhão de pessoas foram feridas no trânsito nos últimos 10 anos, o que custou R$ 3 bilhões ao SUS. Outras 438 mil pessoas perderam a vida. 

No geral, esse número de feridos e óbitos indica que, a cada hora, o trânsito causa cinco mortes e mais 20 novos pacientes encaminhados ao hospital.

Outras mudanças

Em outro ponto, os deputados aprovaram aumento de 10 anos na validade da carteira de motorista com até 50 anos. Bolsonaro previa a extensão para as pessoas com até 65 anos. O atual prazo, de cinco anos, fica mantido para os condutores de idade igual ou superior a 50 anos. Já os motoristas com 70 anos ou mais terão de renovar a cada três anos – período previsto hoje para os que têm a partir dos 65 anos. 

As alterações na validade da CNH também valem para os condutores profissionais. No substitutivo do relator, a carteira deveria ser renovada a cada cinco anos. Um destaque suprimido na exigência do texto pelo PSL, que validou as novas regras como gerais, ampliou para a categoria a validade de 10 anos. O argumento é o de que esses profissionais circulam até 15 vezes mais que o motorista amador. Por isso, estariam mais sujeitos à penalidade. 

“Essa não deveria ser uma justificativa”, contesta a diretora da Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo (Cidadeapé) Ana Carolina Nunes. “Se você trabalha profissionalmente, rodando mais na rua, então você tem essa responsabilidade aumentada. Todo esse argumento de que ‘é muito fácil atingir os pontos’, se é tão fácil assim você atingir todos os pontos com infração, então você não pode dirigir. Não está certo, você não tem condições de dirigir. Porque o carro, a moto e o veículo ele é uma arma letal, que pode matar as pessoas. Você precisa dirigir com cuidado”, afirma Ana Carolina. 

Pelas regras atuais, os motoristas profissionais já são beneficiados com a possibilidade de realizar um curso preventivo de reciclagem quando atingem 14 pontos na CNH. Com a flexibilização, no entanto, a pontuação aumenta para 30. 

Populismo 

A oposição ao governo Bolsonaro tentou barrar a votação do texto, com 212 votos contrários. Mas encontrou resistência no Plenário que, em regime de urgência, colocou em pauta o PL, aprovando-o com 244 votos. A base bolsonarista alega que o projeto é importante para garantir maior eficiência ao Código de Trânsito Brasileiro. 

Para os especialistas, no entanto, a votação deixou “bem claro que colocaram em regime de urgência, porque essa é uma proposta do Executivo com apelo populista. E a gente está falando de um momento em que o presidente está numa derrocada de popularidade”, destaca a diretora do Cidadeapé. 

Há pelo menos três semanas, diversas entidades tentavam junto à Câmara a retirada do PL da votação. O setor de Saúde do Idec chegou a apresentar uma carta na segunda (22), destacando que o tema não tinha caráter de urgência diante da pandemia do novo coronavírus, que já matou mais de 50 mil pessoas no Brasil. 

Mesmo assim, a votação entrou em pauta e agora representa “a vitória do discurso de que é preciso aliviar para os motoristas, porque eles são muito penalizados por um suposto ‘excesso de fiscalização’, quando na realidade não é. Quem vive nas cidades e, principalmente, se desloca a pé, de transporte público e de bicicleta, sabe que não é essa a realidade. Sabe que o que a gente tem é um universo de muita impunidade”, observa Ana Carolina. 

Apagão na fiscalização

A especialista adverte para um “apagão na fiscalização” e uma “falta de apoio na política de segurança de trânsito”, como a retirada de radares e lombadas eletrônicas em avenidas e rodovias. “E isso tem uma consequência desastrosa no nosso sistema de saúde e no sistema previdenciário”, afirma. 

O Idec calcula, por exemplo, a partir de dados da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), de São Paulo, que, para cada multa aplicada, a CET perde outras 10 pela falta de capacidade de fiscalização em toda a cidade de São Paulo. Reportagem da RBA mostra ainda que, ao contrário do Brasil, os países considerados exemplares em segurança viária adotam sistemas cada vez mais rígidos de pontos no documento de habilitação. Na Itália, ultrapassar a pontuação permitida – de 20 pontos – leva à cassação do direito de dirigir. 

Na prática, a diretora do Cidadeapé nota que o governo Bolsonaro faz uma aposta no “populismo” e no chamado “ultraliberalismo selvagem”. Uma proposta de tráfego sem leis, sem fiscalização, no cada um por si. “Só que o problema disso tudo é que custo coletivo e social é muito alto”, alerta. 

Calabria ressalta que esse é também um pensamento “elitista”, das mesmas pessoas “que tendem a querer uma criminalização de crimes pequenos, de pessoas que furtam e falam que ‘a polícia tem que dar porrada’. Mas no trânsito não, no trânsito eles querem menos fiscalização, que a polícia não multe, que não tenha radar. É uma classe que quer fiscalizar o outro, mas não a si mesma”, comenta o pesquisador.

Proposta com soluções 

A tramitação do PL 3.267 também teria deixado secretários de Transporte e outras entidades do campo da mobilidade urbana e da segurança no trânsito, em alerta. A expectativa dos especialistas é que o Senado atue para melhorar o texto e, principalmente, tire a proposta de pauta, diante da atual crise sanitária e econômica.

“Isso tem que ser debatido em audiência pública, tem que ser melhor explicado, temos que levar esses dados e expor a gravidade desses problemas. E tudo isso só depois quando puder fazer reunião presencial”, defende Calabria. 

Na avaliação das entidades, mudanças no código de trânsito deveriam ocorrer para impedir brechas contra a impunidade. Além de marcar um novo planejamento viário em que a maioria formada por pedestres, usuários de transporte coletivo e ciclistas fossem considerados.


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