"Sinistro na real"

Subnotificação, falta de informação e condições precárias aumentam drama da covid-19 nas favelas do Rio

Casos e óbitos relacionados à pandemia nas cerca de 700 comunidades cariocas tendem a se agravar nas próximas semanas

Moradores de favelas do Rio – e toda a população pobre do país – precisam de ações de prevenção dos poderes públicos para enfrentar pandemia

Rio de Janeiro – O avanço da covid-19 para os bairros periféricos e comunidades carentes registrado nestas duas últimas semanas é encarado com muita preocupação nas favelas do Rio de Janeiro. Com o perigo crescente representado pela doença e diante da crônica ausência do poder público, diversas associações de moradores e entidades comunitárias se mobilizam para realizar ações de combate ao coronavírus e de conscientização da população sobre a necessidade de isolamento social. Na avaliação de quem vive nas comunidades, a informação é arma fundamental e o primeiro passo para jogar luz sobre o que de fato começa a acontecer nas favelas cariocas é combater a subnotificação.

A subnotificação de casos e óbitos relacionados à covid-19 nas favelas é um problema que tende a se agravar nas próximas duas ou três semanas – período do pico de aceleração da doença, de acordo com a previsão de sanitaristas e epidemiologistas. Segundo o IBGE, cerca de 1,4 milhão de pessoas vivem nas favelas do Rio (22,5% da população carioca), mas o acompanhamento do número real de casos nesta faixa é feito de forma precária. O painel Data.Rio, que traz dados oficiais atualizados pelo Instituto Pereira Passos (IPP), órgão subordinado à Prefeitura, aponta que no domingo (26) chegou a 20 o número de pessoas que morreram em consequência do coronavírus nas comunidades cariocas.

Segundo o levantamento, a Rocinha lidera a lista oficial com seis óbitos, seguida por Vigário Geral (5 óbitos), Complexo da Maré (4), Cidade de Deus (3), Vidigal (1) e Complexo de Manguinhos (1). Também estão oficialmente confirmados pela Prefeitura 136 casos de covid-19 nas comunidades: Rocinha (54 casos), Vigário Geral (18), Cidade de Deus (17), Mangueira (15), Complexo da Maré (12), Complexo de Manguinhos (11), Vidigal (6), Complexo do Alemão (2) e Jacarezinho (1).

O problema é que estas são as únicas comunidades citadas de forma específica pelo Data.Rio. O mesmo não acontece com as outras favelas cariocas – são cerca de 700, estima-se – que têm seus casos de covid-19 diluídos nos números totais dos bairros onde estão localizadas. Além disso, detalhes como a impressionante relação entre casos e óbitos em Vigário Geral e na Cidade de Deus ou o baixo número de casos em comunidades populosas como Complexo do Alemão e Jacarezinho mostram que a subnotificação é uma realidade concreta: “Na comunidade eu tenho visto uma quantidade muito grande de gente doente”, diz a fisioterapeuta Mônica Albuquerque, do Instituto Momento e Vida, que oferece tratamento gratuito aos moradores do Complexo do Alemão.

Combinados, a falta de testes em massa nas comunidades carentes e o atendimento precário na rede pública de saúde revelam uma face dramática da subnotificação dos casos de covid-19: o aumento das mortes em casa. Dois casos assim aconteceram na última semana no Morro da Providência, comunidade localizada na zona central do Rio e não computada de maneira específica pelo painel do Data.Rio. Segundo a Secretaria Estadual de Saúde, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) recolheu até quarta-feira (22) no Rio 189 corpos de pessoas que morreram em casa. Não foi informado quantos óbitos teriam sido causados pelo coronavírus.

“A subnotificação acontece em decorrência da falta de testes e diagnósticos corretos. O número de óbitos causados pelo coronavírus é muito maior do que a imprensa vem apresentando porque a maioria dessas mortes está sendo registrada nos laudos como morte por causa indeterminada. É fundamental a compra de novos testes”, diz André Constantine, militante dos projetos Babilônia Utopia e Pare de Nos Matar.

“Na favela é outra coisa”

“Vivemos um dos momentos mais delicados no que diz respeito ao contágio. Mas, infelizmente, quarentena e isolamento na favela é outra coisa”, diz Álvaro Maciel, liderança histórica dos moradores das favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, localizadas na zona sul do Rio. Ele ressalta a dificuldade de se convencer as pessoas a aderirem ao isolamento social: “Estamos fazendo de tudo para mitigar o sofrimento da população, levando não só material ou cesta básica, mas, principalmente, informação e higienização”, diz.

A realidade habitacional e econômica dificulta a adesão ao isolamento social nas comunidades: “Na favela, é impossível guardar a quarentena nos moldes estipulados pelo Ministério da Saúde. As moradias são muito próximas umas das outras, com ventilação precária e extremamente quentes. A pessoa é estimulada a sair e ter a residência só como dormitório. A isso se acrescenta a questão econômica, pois é preciso sair de casa para conseguir o que comer”, diz o agente comunitário Jorge Nadais, que atua no Complexo de Manguinhos.

A dificuldade aumenta conforme a precariedade das moradias. Dirigente da associação de moradores da comunidade do Cavalão, na cidade de Niterói, Marcelle Pereira faz seu relato: “Na comunidade moram mais de mil famílias, e muitas delas com mais de 10 ou 15 pessoas em uma mesma casa. É gente que vive dificuldade alimentar e também dificuldade de higiene, pois não há sequer água corrente”.

Quanto mais pobre o morador, maior a dificuldade em ficar isolado: “É difícil conscientizar o povo da favela sobre a necessidade do isolamento social. Em muitos casos há enorme dificuldade das pessoas para ficar em suas moradias, a maioria delas de pau a pique e com água de poço que não é potável”, diz Marcelle.

Sanitização e conscientização

Em parceria com a associação de moradores do Morro Santa Marta, também localizado na zona sul da cidade, Álvaro Maciel e André Constantine comandaram uma operação de sanitização das comunidades com produtos e equipamentos comprados diretamente em São Paulo: “A operação de sanitização in loco teve um bom resultado. Espalhamos o líquido – um desinfetante à base de quaternário de amônio – que é bactericida, inseticida e fungicida em becos, ruas e vielas. Aquilo foi um alívio para a população”, conta Maciel.

Foram distribuídos nas comunidades 500 kits com água sanitária, sabonete, detergente, luvas e máscaras. Houve também a distribuição de cartilhas sobre como prevenir a doença e buscar ajuda se necessário, escritas com linguagem acessível aos moradores mais pobres: “Priorizamos não somente trabalhar a barriga do favelado, mas também a cabeça do favelado. As favelas ainda não atentaram para os riscos da covid-19”, diz Constantine.

A dupla agora trabalha na conformação de uma rede para levar a sanitização a outras favelas da cidade: “A favela se organiza de forma autônoma e forma redes. Mas, não adianta o trabalho de sanitização se a favela não entender e respeitar a importância do isolamento social”, completa Constantine.

Ausência do poder público

O militante do movimento de favelas lamenta a ausência do poder público na ajuda aos moradores, mas diz não se surpreender com isso: “Estamos ocupando o papel do Estado porque, infelizmente, nos territórios denominados como favela, às vezes, a única ação do Estado se dá através do seu braço armado, que é a Polícia Militar”, diz. Maciel acrescenta: “Não recebemos nenhum apoio do poder público. A Prefeitura não ajudou em nada. Procuramos a Comlurb (Companhia de Limpeza Urbana), que fez a promessa de pelo menos nos conseguir o produto desinfetante, mas isso não se concretizou”.

Constantine não poupa críticas também ao governo federal, ao presidente Jair Bolsonaro e as lideranças evangélicas: “Se parte das pessoas nas favelas não está obedecendo à quarentena e ao isolamento social, isso é em decorrência dos pronunciamentos desse presidente que criou um processo de desinformação da população. Por sua vez, as igrejas evangélicas pentecostais aderiram ao discurso do presidente e dizem nas favelas que a covid-19 não é tão grave assim”.

Por isso, um dos objetivos dos movimentos comunitários é propiciar aos moradores de favelas uma narrativa diferente da imposta pelos governantes e a grande mídia: “Na próxima semana compraremos os cabos e a antena para a implementação da nossa rádio comunitária na Babilônia. Entendemos que a informação neste momento é crucial para salvar vidas. Precisamos criar uma contranarrativa ao governo desse presidente miliciano, sociopata e genocida”, diz.