Contra a covid-19

Rio de Janeiro: na ausência do Estado, moradores do Alemão criam gabinete de crise

Já foram doadas 5 mil cestas básicas e 120 mil litros de água. Um polo para atender pessoas com sintomas será aberto em parceria com a Fiocruz

Tomaz Silva/ABR
Tomaz Silva/ABR
Segregação existente na cidade é reproduzida nos núcleos como no complexo de favelas do Alemão, RJ

São Paulo – Passado um mês e meio desde o início da pandemia, o Complexo do Alemão, conjunto de comunidades na zona norte do Rio, ainda tem muita gente sem acesso a direitos básicos como água. Com muitos de seus moradores em casas sem banheiro e sem pia, grande parte da população é diariamente obrigada a buscar e carregar água em baldes. Muitos trabalham como ambulantes, vendendo sacolés, água de coco e o que mais for possível vender nas praias e pontos de grande movimento de pessoas. Com o que faturam durante o dia, passam no mercadinho e compram a janta. Porém, o isolamento social, praticado ainda que parcialmente pelas camadas socioeconômicas mais favorecidas para conter a covid-19, fez o povo pobre perder suas fontes de renda.

Diante da situação, as organizações Voz das Comunidades, Mulheres no Alemão em Ação e Coletivo Papo Reto se uniram para criar o Gabinete de Crise do Alemão, voltado à comunicação sobre o coronavírus e promover ações humanitárias, para coleta e distribuição de alimentos, água e produtos de higiene na comunidade. Em um mês já doou mais de 5 mil cestas básicas e 120 mil litros de água.

“Como dizer para essas pessoas que precisam ficar em casa se elas precisam de alimento? É muito difícil fazer isolamento diante da nossa realidade, em que a maioria das pessoas vivem em dois cômodos, e a maioria das famílias têm mais de quatro pessoas. É um desafio gigantesco. Temos tentado cuidar das pessoas mais vulneráveis, dos grupos de risco”, disse hoje (30) o jornalista Rene Silva, editor-chefe do Voz das Comunidades, em participação no debate sobre coronavírus e a vida nas periferias promovido pela Oxfam Brasil.

Por isso, o Gabinete se uniu à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde, para criação de um polo para atendimento de pessoas com sintomas de covid-19. “Um projeto caro, que deveria estar sendo feito pelo governo. Se eles não fazem, fazemos nós. Esse é o nosso lema, de quem vive em meio a tiroteio. A gente não fica esperando pelo governo e autoridades. Pensamos: será que o governo não vai fazer nada para salvar essa gente?”

Há muitas mortes por ‘causas desconhecidas’, segundo Rene. Há pelo menos dez mortes suspeitas de terem sido causadas pelo novo coronavírus. Nas favelas do Rio há 200 casos confirmados. No Alemão há dois mil casos suspeitos. “Mesmo assim há muita negação. Muitas gente acha que é invenção da mídia”.

Segundo Rene, outra frente que o Gabinete está abrindo na área de comunicação em saúde é um aplicativo do Voz das Comunidades. Com patrocínio do consulado dos Estados Unidos, o app deverá entrar em funcionamento na próxima semana.

Ricos e pobres

Para a economista e professora da Faculdade de Economia da Universidade de São Paulo (USP) Laura Carvalho, que também participou do debate, o Complexo do Alemão é um entre tantos exemplos da desigualdade escancarada pela pandemia. Uma desigualdade, aliás, que vai além da renda e do acesso ao isolamento e aos cuidados. Está também nas curvas de contágio, mortes e ocupação de leitos e de UTIs.

“Como os mais ricos puderam ficar em casa, com os pobres trabalhando para que isso fosse possível, a curva dos ricos já chegou ao pico. Tanto que os hospitais privados já começaram a fazer cirurgias eletivas. Já a curva dos pobres, das periferias, da zona rural, ainda não porque os pobres têm dificuldade para fazer isolamento. Não têm trabalho que possam fazer a distância, as famílias são grandes para pouco espaço. Tem ainda a questão do saneamento, tratamento de esgoto. E a gente sabe da capacidade do coronavírus se disseminar pelo esgoto”, comparou.

Tudo isso, que resulta em mais contágio, conflita com as disparidades de oferta de assistência e leitos, inclusive de UTI, cuja oferta é maior na rede privada. E também com as condições de saúde dessa população. Entre as comorbidades que contribuem para o agravamento e morte pela covid-19 estão a obesidade e diabetes, mais comuns entre as pessoas de menor renda.

“Contágio, acesso à saúde e comorbidades escancaram as desigualdades. Essa pandemia tem sido um tapa na cara. Tem mostrado que as políticas de isolamento não podem ser feitas desacompanhadas de amparo econômico. Na Índia há lockdown, mas as pessoas estão morrendo de fome”, disse Laura.

Pós-pandemia

A economista acredita que o mundo pós-pandemia pode ser ainda mais injusto socialmente, com políticas de austeridade ainda mais profundas. Mas isso depende de como a sociedade vai reagir agora.

“Não podemos sair dessa crise com desigualdade ainda maior. Precisamos mudar, aproveitar essas redes de solidariedade que estão sendo criadas para denunciar tudo isso. A tendência é deixarem as pessoas pobres morrerem aos montes, em números subnotificados”.

A expectativa de Rene é que a exposição de toda essa desigualdade atraia mais atenção para as camadas mais pobres e haja um trabalho mais sério voltado à pobreza. E acredita que o combate à epidemia seria bem diferente caso o país contasse com parcerias antigas com empresas que só agora decide prestar algum tipo de auxílio.

Confira o debate na íntegra:


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