Tempos sombrios

Covid-19 pode encobrir desaparecimento de presos

Portaria que autoriza enterros e cremações sem atestado de óbito pode levar ao aumento da prática de tortura e de execuções

Agência CNJ
Agência CNJ
O Brasil tem 755.274 presos e 40% deles ainda não passaram por julgamento

São Paulo – Depois de idas e vindas à unidade hospitalar Hamilton Agostinho, no complexo Penitenciário de Bangu, Rio de Janeiro, um idoso de 73 anos preso no Instituto Penal Cândido Mendes, no centro, piorou e teve de voltar. Após sete dias do aparecimento dos sintomas, precisou de respiração mecânica e morreu. Isso foi no último dia 17. No dia seguint,e saiu o exame confirmando a covid-19 como causa. Era a primeira da série de mortes confirmadas por coronavírus em prisões no país.

Segundo dados oficiais, até agora são sete óbitos, 107 casos confirmados e 152 suspeitos. Foram feitos 694 testes em uma população de 755.274 presos. Desse total, 40% são presos provisórios, que ainda não foram julgados.

“A suspeita é que haja muito mais mortes. No Rio de Janeiro, todos os 350 presos idosos foram transferidos para o Cândido Mendes, onde houve a primeira morte no sistema prisional. Mais gente deve estar contaminada e devemos esperar pelo pior”, diz a pesquisadora e professora de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux.

A desconfiança vem da subnotificação, da falta de estatísticas como um todo da população encarcerada e das condições de encarceramento no país, com os presos amontoados em celas insalubres, sem ventilação e iluminação adequada – situação propícia para diversas doenças, como pneumonia e tuberculose, entre outras, que agravam a covid-19.

Sumiço

A preocupação com o avanço da infecção pelo novo coronavírus, porém, não é só com a falta de acesso à assistência médica, hospitais, leitos de UTI e respiradores enfrentada sobretudo pela população privada de liberdade. Especialistas temem também que a Portaria conjunta 1 do Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Saúde, de 30 de março, leve ao desaparecimento de cadáveres do sistema prisional.

E mais: Que grupos inteiros de presos simplesmente desapareçam, sem atestados de óbito ou com declarações mal preenchidas, sem controle externo que possa averiguar características da causa de sua morte. Abrindo assim caminho para a ampliação da prática de tortura e execuções no sistema.

A portaria autoriza, entre outras coisas, que os estabelecimentos de saúde a encaminhar para enterro ou cremação corpos não reclamados por familiares ou amigos mesmo sem o atestado de óbito – o que é uma exigência atual.

“O impacto de tal medida em um plano mais geral atenta com as regras mais triviais do direito, especialmente quando se analisa seus reflexos sobre instituições refratárias ao controle democrático, como o são as instituições carcerárias no país, razão pela qual deve ser revista de forma imediata”, avalia uma nota técnica assinada por 10 órgãos e organizações do Rio de Janeiro, entre elas o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública da União, OAB e Frente Estadual pelo Desencarceramento.

Em ofício enviado ao Ministério da Saúde e CNJ, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) reconhece que a portaria traz orientações importantes, mas recomenda algumas mudanças. A primeira delas é que os restos mortais de pessoas não identificadas ou que, identificadas, não foram reclamados, não sejam cremados, mas sim enterrados, o que possibilita exumação para eventual posterior confirmação de identidade.

Isolamento social

E que seja adotado formulário padronizado de identificação de cadáveres não identificados ou não reclamados, de uso obrigatório pelos serviços de saúde e funerários. Além disso, que se considere obrigatório que os restos mortais sejam enterrados com etiqueta de identificação a prova d’água afixada ao corpo e a um envoltório do cadáver, o qual deve seguir com suas roupas.

Se medidas socioeconômicas para que mais pessoas possam ficar em casa e o próprio isolamento social como estratégia para conter o avanço do coronavírus não têm sido estimulados pelo poder público, não seriam as medidas para proteger os presos.

Em 17 de março, o Conselho Nacional de Justiça recomendou a adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo coronavírus âmbito do sistema prisional e socioeducativo. Entre elas, concessão de prisão domiciliar monitorada para idosos, mulheres lactantes, pessoas com vulnerabilidades imunossupressoras e respiratórias, de grupos de risco como HIV positivo e especial atenção para aqueles que praticaram crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa.

A medida elogiada por organismos internacionais não foi seguida por tribunais, que preferiram a linha do ex-ministro Sérgio Moro. “Segundo o posicionamento, não precisaria soltar, e sim isolar. Proíbe-se as visitas e pronto”, lembra Luciana Boiteux.

Em contêineres

Para piorar, a alternativa apresentada pelo poder público é isolar os presos com suspeitas de covid-19 em contêineres. A princípio, segundo o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), essas imensas caixas de metal seriam usadas como unidades de saúde.

Mas depois assumiu-se que seriam usadas mesmo como celas. “Colocam ali três beliches. Como manter o isolamento recomendado dentro desses espaços apertados? Como manter um mínimo de conforto térmico em regiões como o Pará, por exemplo? Essa proposta é tão degradante que já houve até denúncia em organismo internacional de direitos humanos”, diz. “A mobilização e a pressão contra os contêineres são grandes. E pouca gente tem coragem de defender”.

Para Luciana, a ampliação da estrutura prisional, caríssima, não é a solução para a crise humanitária e de saúde nos presídios. Até porque são as distorções da legislação, como a atual lei das drogas, e crimes contra o patrimônio – e não contra a vida – que entopem o sistema. “A maioria está presa por traficar poucas gramas de drogas, por furtar um pacote de fraldas. Sem contar os que estão em prisão provisória, correndo risco de vida na cadeia”.


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