Trabalho infantil

Youtuber mirim: parece brincadeira, mas pode não ser

O trabalho infantil é o outro lado da moeda que move a propaganda velada nos programas de vídeo feito por crianças via YouTube

Reprodução/YouTube
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São Paulo – Desde o surgimento do YouTube, em 2005, aquele vídeo caseiro que era exibido somente para a família na tela da TV caiu nas redes. Afinal, a junção dos termos da língua inglesa you (você) e tube (gíria para televisão) tem exatamente o significado da televisão feita para você, por você.

Criado por Chad Hurley e Steve Chen, funcionários de uma empresa de tecnologia de São Francisco, nos EUA, o site fez imenso sucesso diante das dificuldades que havia para compartilhar arquivos de vídeo. Desde o primeiro, postado em 23 de abril há quase 15 anos, o YouTube coleciona números impressionantes: 2 bilhões de usuários; mais de um bilhão de horas de vídeos por dias, com bilhões de visualizações. São versões locais de mais de 100 países e 80 idiomas diferentes.

Dentre esse vasto público, dos dois lados da tela estão também crianças e adolescentes. Posar para a câmera muitas vezes operada pelos próprios pais, primos ou amigos, mostrando como funciona um brinquedo novo, contando histórias do seu dia a dia ou fazendo brincadeiras, deixou de ser diversão para se tornar trabalho para muitas crianças.

Pesquisa realizada pela ESPM Media Lab indica que, no Brasil, o crescimento das categorias YouTubers Mirins e Teens, de 2016 a 2017, foi de 123% e 390% respectivamente.

A contagem de visualizações de vídeos no YouTube começa quando o canal vai ao ar. Em 2015, o estudo da ESPM analisava os 100 maiores canais do Youtube Brasil e, naquele ano, 32 eram canais consumidos ou produzidos por crianças de 0 a 12 anos. Eles totalizavam 26 bilhões de visualizações. Ao longo de 2016, este número chegou a 230 canais levando em conta youtubers Teens, além dos mirins, , somando 65 bilhões de visualizações. Os números fechados em 2017 saltaram para 117 bilhões de visualizações e a pesquisa passou a verificar mais de 500 canais.

“O crescimento é impressionante, mas cabe explicar que as visualizações mais expressivas estão sempre entre os 100 maiores canais. Os demais apontam tendências, canais que estão crescendo muito e que em breve estarão entre os 100 maiores”, diz Luciana Corrêa, coordenadora da pesquisa Geração YouTube. Sete categorias de vídeos foram analisadas: Minecraft, YouTubers Teens, YouTubers Mirins, Conteúdo de TV, Conteúdo de Entretenimento (que não faz parte da grade de emissoras de TV), Unboxing (ato de abrir caixas de presentes) e Educativos.

Criança não trabalha

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o termo “trabalho infantil” é definido como o trabalho que priva as crianças de sua infância, seu potencial e sua dignidade, e que é prejudicial ao seu desenvolvimento físico e mental. E elenca situações nas quais isso pode ocorrer: é mental, física, social ou moralmente perigoso e prejudicial para as crianças; interfere na sua escolarização; priva as crianças da oportunidade de frequentarem a escola; obriga as crianças a abandonar a escola prematuramente; ou exige que se combine frequência escolar com trabalho excessivamente longo e pesado. 

Para a coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, os youtubers mirins são uma nova categoria de trabalhadores infantis. E estão expostos aos riscos, violências e limitações do desenvolvimento inerentes desse tipo de atividade: erotização precoce e distúrbios de autoestima e autoimagem, acúmulo de responsabilidades e pressões não compatíveis com a fase de desenvolvimento das crianças.

Também entram na conta evasão escolar e problemas de aprendizado, superexposição e suas consequências como assédio e bullying, confusões na diferenciação entre o mundo analógico e digital, carga demasiada de tempo dedicada ao trabalho tolhendo a possibilidade de dedicação ao brincar livre, à convivência familiar e em comunidade.

Andressa alerta ainda para o papel dos pais nessa relação. “Eles são os responsáveis diretos pelo trabalho e pelas consequências nocivas a essas crianças, sendo inclusive exploradores dessa mão de obra, devendo ser conscientizados e, em última instância, responsabilizados por isso.”

O trabalho infantil é proibido no Brasil, lembra a advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, Livia Cattaruzzi. “Existem exceções e o trabalho infantil artístico é uma delas”, afirma, destacando que para ter crianças representadas numa novela, por exemplo, é preciso ter autorização da Vara da Infância (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 149, inc. II e §§ 1º e 2º).

“E o juiz vai considerar qual o conteúdo, quanto tempo essa criança vai gravar, se tem gravação noturna, se vai perder a escola. Leva em conta uma série de fatores, pensando na criança, na fase peculiar de desenvolvimento que ela está vivendo, para poder autorizar essa gravação.”

Mas e quando o assunto é rede social, onde a criança grava seu conteúdo direto de casa. “Tem essa coisa de que ela gosta, pode ser espontâneo. Mas tem também uma série de obrigações, de responder comentários, de ir a eventos, de gravar vídeos”, elenca a advogada . “Tem canais que você entra que avisa que tem vídeos novos toda segunda quarta e sexta por exemplo. Se tem uma habitualidade deixa de ser algo espontâneo, que a criança gosta de fazer, para ser um trabalho.”

Assim, avalia Livia, embora a legislação existente no Brasil seja suficiente para proteger os direitos de crianças nas relações de trabalho em atividades artísticas, muitas empresas têm feito uso comercial dos canais de youtubers mirins sem autorização judicial, burlando a lei.

Diretor presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Caio Magri concorda que muitas dessas crianças acabam envolvidas numa rotina de relação de trabalho. “É diferente de uma relação de um menino que está cortando cana, claro que é. Mas da mesma forma, restringe, reduz as possibilidades das crianças de aprender, de crescer, se desenvolver, com educação, cultura, outras coisas. Restringe a uma vida bastante limitada.”


Do YouTube

A reportagem entrou em contato com o YouTube questionando quantos canais há no Youtube Brasil feitos por ou para crianças. Também questionou como o YouTube se relaciona com a questão do trabalho infantil embutido nesses programas feitos por crianças e sobre a publicidade velada no conteúdo desses programas.

O posicionamento da empresa foi: “O YouTube é uma plataforma aberta e destinada a adultos, como está observado em nossos termos de serviço. Seu uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável.

Anúncios, marcas e criadores devem seguir nossas diretrizes e estar em conformidade com as leis locais. Em relação ao conteúdo gerado por usuários, todos devem seguir nossas Diretrizes da Comunidade. Quando não há violação clara à política de uso do produto, a análise final sobre a necessidade de remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet”.

Especializada no tema Criança e Consumo, a advogada Livia Canttaruzzi ressalta que o YouTube é uma plataforma aberta onde as crianças circulam livremente, não só como espectadores mas como produtores de conteúdo, criando seu próprio canal e produzindo vídeo do seu cotidiano. 

“Então as empresas de tecnologia têm um papel fundamental nesse processo de mudança, a gente defende esse redirecionamento. E que a construção de uma sociedade menos consumista, que respeite os direitos da criança, é uma construção coletiva, então todo mundo tem que fazer sua parte. As empresas de tecnologia, as empresas anunciantes, os próprios canais, a família, os educadores. É um todo. Tanto que o artigo 227 da Constituição Federal prevê que os direitos da criança devem ser assegurados como prioridade absoluta por estado, família e sociedade.”


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