"Amanhã eu compro"

Publicidade infantil: o peso da propaganda, oculta ou escancarada, na vida das crianças

Cada família tem seu jeito de tratar a situação. Mas é preciso identificar a influência da propaganda infantil no YouTube nos hábitos de consumo da criança

Reprodução/YouTube
Reprodução/YouTube

São Paulo – Vídeos mostrando banheiras cheias de Nutella, como fazer tudo errado durante 24 horas, comparando crianças pobres e ricas em situações de consumo, incentivando a aquisição de produtos infantis, brincadeiras com bonecas caras e inacessíveis à maioria da população. Uma rápida navegada pelo YouTube escancara um padrão que, no Brasil, é considerado ilegal. Mas, à revelia da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor ou do Marco Legal da Primeira Infância, a publicidade infantil rola solta, seja de forma velada ou em formatos mais escancarados.

A situação preocupa pais e educadores. E dá a dimensão de a quantas anda a responsabilidade social das empresas.

Roberta Tuckmantel é professora, mãe da Isabela, de 8 anos, e da Melissa, de 7. E diz que as meninas assistem muito YouTube. “Muito mesmo, vários canais.” Entre os preferidos, Júlia Silva, Luluca, as gêmeas. “Esses canais são de meninas que mostram sua rotina, aonde vão, fazendo brincadeiras, comprando materiais escolares, acessórios, roupas, brinquedos etc. E com certeza elas já compraram desde acessórios até brinquedos que as meninas dos vídeos estavam usando ou brincando”, reconhece Roberta. 

Além dos produtos, relata a mãe, as youtubers mirins costumam indicar lojas. E já foi com as filhas a uma, de acessórios. “Na sala das minhas filhas as meninas também têm os mesmos acessórios, roupas que as meninas dos canais do YouTube usam. Então, com certeza tem uma grande influência.”

A professora diz não se incomodar com essas publicidades. “Oriento as meninas que não é tudo que aparece que podemos comprar e elas super entendem.”

Roberta, o marido Diego e as filhas: “Oriento as meninas e elas entendem” (Arquivo pessoal)

Publicidade infantil zero

A advogada Tamara Cypriani Oliveira, mãe do Rafael, de 5 anos, se incomoda e muito. Por isso, não permite que o menino assista a vídeos no YouTube. “Posso dizer que o contato dele hoje com publicidade é zero”, afirma. “Como temos acesso ao Now e ao Netflix (plataformas de vídeo pagas), que não têm publicidade, ele não assiste TV aberta e nem mesmo canais infantis da net. Só assiste aos canais que não têm publicidade embutida.”

Ela sabe que na idade do Rafael é mais fácil lidar com a situação. “Temos como fazer isso. Ele fica na escola e depois todo acesso que ele tem é controlado pela gente. Ele não assiste e nem escolhe os desenhos sem nossa supervisão”, explica. “Colocamos o tempo do desenho e tiramos quando termina. Ou juntos escolhemos um outro que ele possa assistir”, ressalta.

Isso não faz com que Rafael não tenha desejos, mas ele raramente pede alguma coisa, algum brinquedo, por causa de comercial. “Normalmente ele pede quando vê algum amigo brincando, vai num parque, numa festinha. Ou numa loja de brinquedo quando vê algo que interessa. Somos péssimos para o pessoal de publicidade”, brinca Tamara. “Pelo menos enquanto a gente conseguir, enquanto ele tem 5 anos, a gente faz assim.”

Roberta e Tamara são primas. As crianças convivem e se relacionam muito bem. E as famílias lidam tranquilamente com as diferenças nesse ponto de vista em relação à educação dos filhos.

Afinal, não há certo ou errado ao proibir ou liberar o acesso das crianças às plataformas, confirma a coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda. “A abordagem preto no branco e de culpabilização não é a melhor”, avalia. “A publicidade voltada à criança já é ilegal e é preciso um trabalho para que essa premissa seja cada vez mais cumprida. Como ainda há canais de exposição das crianças, o máximo de proteção é o ideal: caso seja possível evitar, é melhor, quando não, a conversa franca, a educação crítica tanto dos pais como da comunidade e da escola podem ajudar a minimizar os efeitos”, recomenda

Compra, mãe!

Para ilustrar como a propaganda é assimilada pelas crianças, Tamara conta que uma vez o Rafael assistia a um desenho num canal infantil da net e automaticamente, ao final, entrou um comercial do Vanish (produto usado para tirar manchas de roupas). “Ele ficou um tempão perguntando porque eu não comprava Vanish que deixa tudo branco. Ou seja, acho super-maléfico. Por isso a gente não deixa ele ter acesso.”

A professora Roberta também reconhece o peso que a publicidade tem nas decisões de consumo das filhas e descreve uma história. “Tem uma youtuber dessas meninas teens que foi morar no Canadá. Ela mostra a rotina dela lá, as coisas diferentes e aparece indo nas lojas que gosta ” , conta. “Quando fomos pra Disney, agora em janeiro, a Isabela viu a mesma loja de acessórios e ficou doida pra entrar, comprar um lacinho de cabelo. As coisas eram muito caras nessa loja, mas ela quis comprar só porque era a loja que a menina do vídeo ia. Então realmente vi como faz a cabeça delas.”

O Luccas Neto é outro canal seguido pelas filhas da Roberta. Além das brincadeiras, como a banheira de Nutella, o rapaz de 29 anos faz muita propaganda de acessórios, livros, brinquedos com a sua marca. “Eu sempre falo que se for baratinho eu até compro, caso contrário, se for algo mais caro pra elas pedirem no aniversário ou Natal.”

Roberta destaca que está sempre orientando as filhas sobre essas questões. “Já que na sala de aula delas a maioria das meninas assistem os mesmos canais, usam os mesmos acessórios que ficam ‘populares’. Cada hora é uma coisa: chiquinha pra cabelo, pulseira, colar, gargantilha. Cada hora estão usando algo e é tudo de youtubers.”

Velada e nociva

Livia Cattaruzzi é advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana. Estudiosa do tema, ela destaca que empresas de tecnologia, como o YouTube, e os anunciantes devem ter responsabilidade ao direcionar suas práticas publicitárias para o público infantil. O YouTube, por exemplo, foi multado nos Estados Unidos por usar dados coletados das crianças para fins de propaganda.  

“Quando a gente fala de YouTube e das redes sociais de maneira geral, além de ter publicidade que fala com a criança, ela é uma publicidade velada. Então viola dois dispositivos do Código de Defesa do Consumidor: o 36 que traz o princípio da identificação da mensagem publicitária); e o 37, que prevê que é abusiva a publicidade que se aproveita da falta de experiência e julgamento da criança”, explica.

“No nosso entendimento, justamente porque a criança está vivendo uma peculiar fase de desenvolvimento físico, cognitivo, psíquico, social, emocional, espiritual, ela não poderia ser alvo de mensagem publicitária em hipótese alguma”, salienta a advogada.

“Então a gente defende um redirecionamento. E que a construção de uma sociedade menos consumista, que respeite os direitos da criança, é uma construção coletiva. Todo mundo tem de fazer sua parte. As empresas de tecnologia, as empresas anunciantes, os próprios canais, a família, os educadores. É um todo. Tanto que o artigo 227 da Constituição Federal prevê que os direitos da criança devem ser assegurados como prioridade absoluta por estado, família e sociedade.”

O YouTube afirma que é uma plataforma aberta e destinada a adultos. “Como está observado em nossos termos de serviço ” , informou, via assessoria de imprensa. “Seu uso por crianças deve sempre ser feito num contexto familiar e em companhia de um adulto responsável. Anúncios, marcas e criadores devem seguir nossas diretrizes e estar em conformidade com as leis locais. Em relação ao conteúdo gerado por usuários, todos devem seguir nossas Diretrizes da Comunidade. Quando não há violação clara à política de uso do produto, a análise final sobre a necessidade de remoção de conteúdo cabe ao Poder Judiciário, nos termos do Marco Civil da Internet.”

Retrocesso na TV aberta

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, pretende legalizar a publicidade infantil nos meios de comunicação, inclusive na TV aberta. A pretexto de regulamentar a prática em plataformas virtuais, como o YouTube, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) lançou uma consulta pública para editar uma portaria que estabeleça critérios para a veiculação de anúncios voltados ao público infanto-juvenil. A consulta foi encerrada em 27 de fevereiro, mas a Senacon ainda não informou qual foi o resultado.

“Não concordo porque a criança não tem maturidade para interpretar a intervenção da publicidade dentro de um programa infantil como publicidade”, avalia Tamara, mãe do Rafa. “Muitas vezes a criança age por repetição, ou seja, se viu seu desenho favorito usando ou recomendando algo provavelmente vai querer também. Publicidade embutida no desenho é péssimo para a criança. Se fora já influencia, imagina dentro do desenho.”

Roberta, mãe da Mel e da Belinha, preocupa-se com as crianças menores, que não entendem a mensagem da publicidade que aparece nos intervalos dos desenhos, não conseguem distinguir. “Minhas filhas são maiores e apesar de serem orientadas aqui em casa sobre consumo etc, elas já entendem, mas muitas vezes querem adquirir vários itens. Não me incomodo, pois oriento bem e elas sabem o que podem e o que não dá pra pedir. Mas acho desnecessário (liberar a propaganda), não precisaria ter.”

O presidente do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, Caio Magri, acha importante não deixar abrir esse espaço. “É uma questão de proteger as crianças da má propaganda, da má comunicação. Por exemplo, continua tendo propaganda de bebida alcóolica vinculada ao esporte, algo que deveria ter sido banido da televisão brasileira. Existem forças econômicas muito poderosas que continuam mantendo esse tipo de comunicação. Abrir de novo a discussão ou o acesso da propaganda para crianças na TV aberta é um retrocesso.”

Para a coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, essa ideia do governo é só mais uma empreitada que coloca o interesse do mercado financeiro e empresarial à frente do interesse coletivo. “E, nesse caso, ainda pior, já que coloca o interesse de uma parcela da população em pleno desenvolvimento em risco”, critica.

“Não é de surpreender que um governo movido a fake news e que aloca mais recursos para publicidade oficial e corta recursos das áreas sociais resolva atender demandas do mercado através de um mecanismo de consulta pública. Chega a ser irônico”, alfineta.

Estratégia de mercado

A advogada do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, explica que muita gente, como Sergio Moro, diz que a publicidade infantil inviabilizou a programação infantil na TV aberta. Mas, na realidade, foi uma questão de estratégia de mercado das emissoras de TV. “Se você tem uma programação de uma amanhã inteira você acaba atraindo anunciante para aquele nicho específico. Então você tem uma manhã toda a programação infantil. Se você cria uma programação de classificação indicativa livre – não vou entrar no mérito se o conteúdo adequado para criança ou não – você consegue atrair tanto anunciantes quanto espectadores de zero a 100 anos. Então você amplia o seu nicho a faixa etária que acompanha esse canal e também os anunciantes para todas essas idades.”

Livia também considera que a medida proposta por Moro coloca o Brasil na contramão de um avanço internacional. “Até porque existem muitas empresas que têm se posicionado, deixaram de fazer publicidade pra criança e a legislação vai abrir essa brecha” salienta. “A gente está num momento que inclusive o Judiciário já aplicou a lei. A gente tem casos chegando ao Tribunal de Justiça, reconhecendo a abusividade da prática de publicidade infantil.”

O Instituto Alana tem um longo trabalho sobre o tema e defende que a publicidade infantil, pela legislação atual, é totalmente proibida. “O que falta é a fiscalização e o cumprimento pelas empresas, porque fica meio que na linha do crime que compensa. O quanto elas investem e têm de retorno por essas campanhas e eventualmente se forem multadas. Se colocar na balança, acaba compensando o valor da multa em comparação com o que foi arrecadado com a campanha. Porque é mais fácil conversar com as crianças, funciona, dá certo. Não é à toa que existe uma indústria bilionária voltada somente para fazer publicidade para o público infantil.”

Na contramão
Em vez de aprimorar a regulação, como nas democracias mais avançadas, o Brasil corre o risco de andar para trás. A falta de atuação do Estado nas mídias onde a publicidade infantil já é vetada e a total ausência de regras para o tema nas redes sociais incomoda famílias. É o que relatam, nesta entrevista, a socióloga Adriana Marcolino e o professor Sérgio Godoy, que têm duas filhas, de 9 e 5 anos, ligadas no YouTube. Assista: