Libertação

O feminismo e a luta das mulheres também libertam os homens, diz Ana Prestes

Mais de um século depois de iniciada a luta das mulheres por igualdade de direitos, termo volta a ser objeto de disputa nas redes sociais

Arquivo pessoal
Arquivo pessoal
Na polarização da internet, feministas são retratadas como "estridentes, histéricas e desequilibradas"

São Paulo – No Brasil, uma mulher é vítima de feminicídio a cada duas horas. Apesar do grito pela sobrevivência, o feminismo ainda é encarado por muitos como “coisa de esquerda”, de gente que não tem o que fazer. Ou dizem que é apenas o oposto do machismo, em mais um esforço para tentar reduzir a luta das mulheres. Para a cientista social Ana Prestes, além de garantir direitos iguais às mulheres, o feminismo também serve para libertar inclusive os homens das “amarras” da sociedade patriarcal.

Doutora em Ciência Política e autora do livro infantil Mirela e o Dia Internacional da Mulher (Ed. Lacre), que retrata as conquistas das mulheres ao longo da história, Ana afirma que a reação ao feminismo é proporcional ao avanço da luta contra as desigualdades salariais, pela acesso às estruturas de poder, e por uma relação mais igualitária entre todas as esferas da sociedade.

Ela explica que o feminismo não é monopólio da esquerda, como acusam os conservadores, mas um movimento “bastante eclético e abrangente”, que comporta inúmeras tendências e correntes internas. A ideologia que está por trás do seu desenvolvimento, segundo ela, “é a do antipatriarcado e também a da democracia”, em busca de um mundo mais humanizado, solidário, com igualdade de direitos.

“Só temos a ganhar com o feminismo no sentido de humanizarmos esse mundo, tornarmos ele um lugar de solidariedade, partilha, companheirismo, compreensão, igualdade de direitos e possibilidades. Se a vida tem um lado que é de fardo e sobrecarga, não seria melhor carregarmos juntos?”

Entrevista

Passado mais de um século do surgimento do movimento feminista, por que essa palavra volta a incomodar? O aumento dos ataques é sinal de fortalecimento do movimento?

Os ataques são sinal claro do fortalecimento do movimento feminista nas últimas décadas. Estamos no que chamamos de Quarta Onda Feminista, iniciada nessa década e marcada por movimentos como “Ni Una Menos”, “Me too” e outras vinculadas ao “empoderamento” feminino. O avanço dessa onda tem uma projeção bastante forte, especialmente pelo desenvolvimento acelerado das tecnologias de comunicação e da interação no mundo digital. Enquanto o movimento feminista cresce, aumenta sobremaneira a reação a ele. Uma das estratégias da reação, até por carecer de sofisticação e argumentos consistentes, é se voltar contra a palavra feminista.

Deste modo, fazem uma campanha de estigmatização da palavra para que as pessoas sintam vergonha ou fiquem constrangidas ao serem identificadas como feministas. Para as pessoas que tenham dúvidas sobre a palavra feminista, digo que ela é uma palavra que vem sendo usada desde o final do século 19, especialmente difundida a partir do crescimento do movimento sufragista que defendia os direitos políticos das mulheres, principalmente o direito de votar. Ela é uma palavra desprendida de ideologia? Não. Nenhuma é. A ideologia que está por trás da palavra feminista é a do anti-patriarcado e também a da democracia em seu sentido amplo, da inclusão de todos.

Ao mesmo tempo em que algumas pautas importantes do movimento feminista avançam, como a legalização do aborto na Argentina, em diversos outros países, como no Brasil, vemos registros recordes de casos de feminicídios. Estaríamos hoje em um dos melhores momentos ou em um dos piores da história para ser mulher?

Se formos pensar em termos de humanidade, certamente estamos em um melhor momento para ser mulher. O avanço do conhecimento, da experiência e da tecnologia provem uma vida mais segura em termos de saúde, por exemplo. O câncer de mama e outras doenças que afetam especificamente mulheres, hoje, são mais preveníveis e matam menos do que há algumas décadas, quando diagnosticadas precocemente. Em termos políticos também houve avanços, há menos de 100 anos não podíamos votar no Brasil e muito menos sermos eleitas. Há algumas décadas também não podíamos nos divorciar, trabalhar em determinados setores, frequentar certos cursos universitários.

Por outro lado, pautas importantes como a do aborto, que prefiro chamar de interrupção voluntária da gravidez, não avançaram, apesar de países     vizinhos como a Argentina estarem bem próximos de conquistar e outros já terem esse direito garantido, como o Uruguai. Mesmo em termos de violência contra a mulher houve avanços, embora os números alarmantes de feminicídios, cujos registros aumentam todos os anos, nos façam duvidar. Hoje temos mais recursos para denunciar e há punição específica prevista na legislação para aqueles que praticam  violência contra mulheres, como a Lei Maria da Penha.

Ainda assim, estamos muito longe de vivermos em um mundo seguro e digno para as mulheres. Em todos os aspectos da vida precisamos avançar. No laboral, onde nossos salários são menores e enfrentamos preconceitos de todo tipo. Na família, onde ficamos com toda sobrecarga do trabalho doméstico e das crianças. A violência obstétrica e o impedimento ao aborto, na saúde reprodutiva. Ou na maternidade, com a falta de acesso à creche e a dificuldade para se reinserir no mercado de trabalho e poderia discorrer aqui sobre uma série de aspectos e demandas que justificam a existência o movimento feminista.

Os mecanismos de buscas na internet sugerem que o feminismo é doença, é coisa de quem não tem o que fazer. Na era virtual, a desinformação e a deturpação são estimuladas contra o termo?

A era virtual é a nossa era. É a nossa praça pública. É nessa praça que louvamos, mas que também apedrejamos. Expomos aquilo que achamos bonito e atacamos aquilo de que não gostamos, aquilo que queremos destruir. O feminismo é um dos alvos preferenciais no centro do circo. As feministas são sujas, promíscuas, feias no sentido de não serem               admiráveis como algo belo. São estridentes, são histéricas, desequilibradas, loucas, bruxas. Gosto sempre de usar o exemplo da campanha que foi         feita com relação a única presidenta que tivemos até então, Dilma Rousseff, na época de sua derrubada do poder. As imagens associadas a ela nas redes foram se transformando de uma mulher executiva, bem vestida e bem sucedida, para uma mulher descabelada, com olheiras, associada a imagens de animais como vacas e porcos ou de pernas abertas em adesivos nas bocas dos tanques de combustíveis.

Na sociedade patriarcal, ser pai, no sentido do exercício da paternidade não é mérito. É demérito. Explico. Cabe ao pai ser o provedor, o mantenedor, o guardião, mas nunca o cuidador, o educador

Nessa era virtual, imagem é tudo. A candidata à Presidência em 2018 Manuela D’Ávila também é exemplo de campanha semelhante, quando seus detratores divulgaram imagens pejorativas dela com o corpo todo tatuado, com aspecto de drogada ou alcoolizada, seminua, sexualizada. E a essas imagens colam a palavra feminista, na tentativa de afastar as “pessoas de bem” dessas “más companhias”. Para essa sociedade machista, o exemplo de sucesso geralmente está associado a uma imagem de um homem branco, meia idade e bem vestido como um executivo ou bem sucedido homem de negócios. Já o fracasso está associado às mulheres, principalmente as negras, que devem continuar “servindo” mesa e cama das famílias exemplares.

O feminismo é um movimento de esquerda? De onde surge essa aproximação?

O feminismo não é um movimento de esquerda, embora boa parte daqueles que se identificam com a esquerda também se identifiquem com o feminismo. Vamos pegar uma de nossas principais sufragistas brasileiras, Bertha Lutz. Ela foi uma pessoa muito importante, não só para vocalização das demandas feministas do início do século 20, como para a prática militante de buscar caminhos para a conquista dos direitos das mulheres. Ela não era uma mulher de esquerda, não fez parte de nenhum partido ou agremiação vinculado à pauta da luta pelo socialismo ou o comunismo, por exemplo.

Um dos debates mais interessantes no interior do movimento feminista do final do século 19 e início do século 20 é entre as sufragistas e as socialistas. As sufragistas, geralmente mulheres de classe média e brancas, defendiam o direito ao voto descolado de uma luta mais  geral de emancipação humana com relação ao capitalismo. Já as socialistas, como a alemã Clara Zetkin e a russa Alexandra Kollontai, diziam que de nada adiantava               conquistar o direito ao voto se mulheres pobres continuassem esmagadas pelo capitalismo. Digo isso para exemplificar que dentro do movimento feminista há todo tipo de mulheres do espectro político, das que se identificam com uma pauta mais liberal, capitalista, às que se identificam com pautas de esquerda, socialistas, e até mesmo mais radicais, como anarquistas. Nesse sentido, o movimento feminista é bastante eclético e abrangente. O que identifica todas as correntes internas é a percepção de que vivemos em um mundo patriarcal.

Como um movimento que prega a igualdade de direitos, quais os benefícios do feminismo também para os homens? E o machismo, esse sim, é uma doença? Como se relaciona com as estruturas de poder dentro das sociedades atualmente?

O machismo não é uma doença. Assim como o machismo não é o reverso ou a outra face da moeda do feminismo. O machismo é a expressão cotidiana de uma sociedade patriarcal em sua estrutura. Na sociedade patriarcal, ser pai, no sentido do exercício da paternidade não é mérito. É demérito. Explico. Cabe ao pai ser o provedor, o mantenedor, o guardião, mas nunca o cuidador, o educador. Na sociedade patriarcal, é bonito e louvável o homem forte fisicamente e trabalhador, que põe a comida na mesa da família, mas não é bonito e digno de elogio o homem que não trabalha para cuidar da casa ou homem que troca a fralda dos bebês, que faz o dever com as crianças.

Esse homem é visto como fraco e afeminado e só vai ganhar rechaço, sarcasmo, hostilidade e ridicularização. Essa é só a parte aparente de uma sociedade estruturada através do patriarcado. Na galeria de ex-presidentes da Câmara dos Deputados ou do Senado, não há nenhuma mulher ali. Nossas estruturas de poder não permitem   mulheres, negros e pobres. Sempre gosto de dar o exemplo de que até 2016 o Plenário do Senado só tinha banheiro masculino. O mesmo se dá no mundo do trabalho, na educação, na saúde, em todos os setores da sociedade.

Deste modo, um movimento que prega a igualdade de direitos, como o feminismo, traz, sim, muitos benefícios aos homens. Primeiro que humaniza as relações, propõe uma sociedade em que, independente de sermos pai ou mãe, somos essencialmente cuidadores das e dos pequenos que colocamos no mundo. É gente cuidando de gente. Quando vejo um menino de três anos com uma boneca bebê no colo, o que estou vendo? Um menino com o brinquedo errado na mão ou um ser humaninho brincando de cuidar de outro.

O feminismo pode libertar os homens das amarras que também o prendem. Se sou homem não posso chorar, não posso errar, não posso fracassar, não posso me envolver emocionalmente e por aí vai todo um código machista que todo homem já cumpre desde antes de nascer. Ainda na barriga da mãe, seu futuro quarto vai ganhar as imagens, cores e brinquedos supostamente apropriados a um menino. Todos, homens e mulheres, só temos a ganhar com o feminismo no sentido de humanizarmos esse mundo, tornarmos ele um lugar de solidariedade, partilha, companheirismo, compreensão, igualdade de direitos e possibilidades. Se a vida tem um lado que é fardo e sobrecarga, não seria melhor carregarmos juntos?


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