Ataque à imprensa

Felipe Boff: ‘Nós jornalistas nunca nos sentimos tão desrespeitados como agora’

Professor de jornalismo hostilizado em discurso de formatura explica o caso e fala da realidade da profissão hoje no país

Marcelo Ferreira
Marcelo Ferreira
Boff concedeu entrevista ao Brasil de Fato: "Nós jornalistas nunca nos sentimos tão desrespeitados como agora"

Brasil de Fato – “Uma tentativa fracassada de impedir o discurso de um paraninfo de jornalismo sobre liberdade de imprensa e em defesa do jornalismo”. Assim o professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Felipe Boff descreve o ataque que recebeu de parte da plateia durante o discurso que proferiu na formatura do curso de Comunicação, realizada no sábado (7).

Boff, que foi o paraninfo dos formandos da turma de jornalismo, iniciou seu discurso proferindo: “A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar”, o que de pronto despertou reações exacerbadas. Seguiu destacando as agressões à imprensa realizadas pelo presidente Jair Bolsonaro e a propagação de informações falsas nas redes sociais. Em meio às hostilizações, recebeu apoio dos formandos, dos colegas professores e de outra parte da plateia. “Foi esse apoio que me permitiu continuar o discurso, que estava só no começo. Então eu continuei e apresentei as provas das minhas queixas, das nossas queixas dos jornalistas, e de defensores da democracia, que são esses ataques”, explica.

Ao final de cerimônia, o professor precisou ser escoltado por seguranças. O caso ganhou forte repercussão em portais de notícias e nas redes sociais. A Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e o Sindjors (Sindicato dos Jornalistas Profissionais do RS), assim como diversas outras entidades, se manifestaram em apoio ao professor e em repúdio à violência e ao ataque à democracia. A Unisinos também emitiu uma nota, em que afirma defender os princípios democráticos e estimular a pluralidade de ideias, apontando que, “nas cerimônias de colação de grau, os professores escolhidos pelos alunos para representá-los como paraninfos têm o direito de fazer uso da palavra e liberdade para se expressarem conforme suas convicções pessoais.”

Para Felipe Boff, o governo pisa na categoria por “um projeto de dominação que quer acabar com a informação livre e comprometida para se perpetuar no poder”. Em entrevista ao Brasil de Fato RS, o professor, que trabalha com laboratório de produção prática com alunos do final do curso de jornalismo, comentou a situação. Falou ainda sobre a realidade do exercício da profissão em meio aos ataques promovidos pelo presidente e seus apoiadores, consciência de classe da categoria, ética jornalística, mercado de trabalho e fake news.

Confira a entrevista:

Na última formatura de jornalismo na Unisinos, você sofreu um ataque quando fazia o discurso enquanto paraninfo. Poderia nos contar como foi essa situação e como você se sentiu?

Para mim o que aconteceu foi uma tentativa fracassada de impedir o discurso de um paraninfo de jornalismo, sobre liberdade de imprensa e em defesa do jornalismo. Por mais que essa tentativa tenha fracassado, ela é surpreendente e em um primeiro momento nos deixou preocupados e tristes.

Foi a primeira vez que isso aconteceu numa formatura?

Que eu saiba, na Unisinos, na história recente, sim. Imagino que tenha havido algum tipo de manifestação normal em alguns cursos, mas esse tipo de xingamento, tentando impedir a pessoa de falar, acho que a primeira vez. É a terceira vez que eu sou paraninfo, há três discursos que eu venho alertando para essas coisas e a situação se agravou de lá para cá.

Eu falei coisas que dizem respeito à nossa categoria, mas também a toda a sociedade. Me surpreendeu não só essa reação, que foi de parte do público, mas também a violência verbal dessa reação e a intransigência no sentido de ser um protesto que quer calar. Me chocou mais ainda, porque ela foi logo no início do discurso, quando eu introduzi o tema, falando sobre liberdade de imprensa. Quando eu apontei que o presidente da República é hoje o maior propagador de ameaças a essa liberdade, já começaram os protestos.

Passado esse primeiro impacto negativo, vieram os impactos positivos: o apoio imediato dos novos jornalistas formandos, que se levantaram e aplaudiram, e dos meus colegas professores, não só do jornalismo, mas de outros cursos, como comunicação digital e fotografia, já que foi uma formatura conjunta. Eles também se levantaram e se posicionaram atrás de mim. E também, de parte da plateia que também se levantou e aplaudiu. Foi esse apoio que me permitiu continuar o discurso, que estava só no começo.

Então eu continuei e apresentei as provas das minhas queixas, das nossas queixas dos jornalistas, e de defensores da democracia, que são esses ataques. No momento em que eu citei falas do presidente da República, foi o momento em que vieram as reações mais exacerbadas, dizendo “chega, absurdo”. Eu também acho que chega, que é absurdo o que ele está fazendo.

Eu não estava atacando, eu estava nos defendendo de ataques. Isso me leva a pensar que talvez essas pessoas sejam tão desinformadas, voluntariamente, que não têm consciência de que esses ataques estão sendo feitos, apesar da frequência enorme. O presidente tem nos atacado a cada três dias, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj).

É para além de uma desinformação, o sentimento é que as pessoas sabem que isso está acontecendo, mas elas estão recebendo uma outra informação, que as estão blindando.

Que não é jornalística. Que é propaganda política pura e simples e que tem como alvo, quase sempre, desmentir o jornalismo.

Seria isso uma estratégia do governo?

Uma estratégia clara e cada dia mais intensa. Outra coisa que me chamou a atenção, que ficou para mim, foi esse apoio, os alunos se sentiram representados. O público era composto de pais, familiares e amigos mais próximos dos formandos. E a gente sabe que existe uma cisão nos lares, que se deu nas eleições e é incentivada diariamente por essa postura belicosa do presidente e dos seus apoiadores. E esses alunos passam a barra de começar uma carreira no jornalismo tendo adversários dentro da própria casa.

Talvez se evite falar disso em casa, porque é difícil mesmo. Eu também tenho familiares que discordam de mim e não conseguem entender plenamente minha profissão. Então, no momento que eu coloco isso para pais, me senti dando voz a muitos alunos que gostariam de dizer isso aos seus. Por outro lado, esses pais tiveram que ouvir algo que até então eles não vinham dando ouvidos e que os filhos estão passando na pele.

Eu procurei fazer isso da forma mais honesta possível, apresentando dados, que é o levantamento da Fenaj, mostrando que o presidente utiliza de informações falsas, conscientemente. O levantamento do Aos Fatos traz 608 declarações falsas e distorcidas dadas por ele ao longo de 2019. Eu usei dados, que é o que a lida jornalística me ensina a fazer.

Como você avalia essa estratégia do governo, de desqualificar a imprensa? Não que a imprensa também não erre e manipule, porque foi também uma das grandes responsáveis pela presidenta Dilma ter sofrido o impeachment, pela eleição de Bolsonaro e por esse clima de ódio que a gente vive no país. Porque o governo faz essa desqualificação e ao mesmo tempo produz a própria comunicação dele, via as redes sociais, e com o apoio de parte da imprensa, como a Record.

Eu considero que são três as redes que o apoiam: a Record, o SBT e a Bandeirantes. E agora mais uma rede, que parece encomenda, mas que eu não posso criticar porque não vi o que a CNN vai fazer. Mas ela vem com um lustro de credibilidade jornalística, que a marca tem. Vamos ver o que ela vai fazer.

Sobre a outra questão, sim a imprensa tem erros. A gente que ensina, estuda e pratica tem que ter essa consciência e tem que discutir e tentar melhorar, sempre. Isso faz parte da nossa atividade e a gente vive momentos melhores e piores. Mas todos nós concordamos que pode ser ruim com a imprensa, mas é muito pior sem ela. Porque sem ela, que é a estratégia do governo, a gente tem só propaganda política, e isso não tem compromisso com os fatos e a verdade, mas com um projeto de poder e de dominação. Inclusive intelectual e cultural, é isso que o governo faz.

Daí vem as críticas sobre o governo anterior. Primeiro que existe uma diferença muito grande entre as críticas que a imprensa sofreu nos governos anteriores e no atual.

Sim, nunca nenhum presidente deu banana para os jornalistas…

É, nós jornalistas nunca nos sentimos tão desrespeitados como agora. E nunca ficou claro que essa estratégia massiva fazia parte do programa político, pelo menos para mim. Já reclamei em momentos anteriores dizendo que as críticas passaram do tom ou que rumavam para esse caminho, tipo o discurso de que tem que acabar com toda essa imprensa que está aí. Acho que a grande mídia tem problemas e tem que corrigi-los, mas também tem acertos. E a gente precisa de um parâmetro.

O que está acontecendo hoje, sobre esse argumento canalha, de que a imprensa tem defeitos e mente, está colocando tudo na lata do lixo e ficando só com a propaganda política e manipulação. A gente está experimentando os efeitos disso, e quem é que paga o pato? Primeiro, o jornalista. Nós nos sacrificamos na nossa profissão para manter a sociedade informada. Enfrentamos as pressões internas das redações, e as pressões externas, quando a gente vai para a rua. Enfrentamos desafios enormes na nossa capacidade de comunicar para se aperfeiçoar a cada dia. Cada matéria que a gente está fazendo é uma lição. Então isso é uma tentativa de jogar todo esse trabalho na lata do lixo, pisando na nossa categoria por um projeto de dominação que quer acabar com a informação livre e comprometida para se perpetuar no poder e retornar ao período ditatorial.

Os ataques não se dão só nesse sentido. Já tivemos o fim da obrigatoriedade do diploma para o jornalista, e agora tem a MP 905, que coloca a profissão de jornalista e radialistas como uma das que não precisa de registro profissional. Como isso está sendo trabalhado nas faculdades de comunicação?

Essa mais recente do fim do registro é claramente uma provocação, mais um ataque, e também uma maneira de tentar dizer para a sociedade que o jornalista não tem importância, que qualquer um pode ser jornalista. Não no sentido que qualquer um pode vir a ser jornalista, mas que qualquer coisa que se comunique é jornalismo.

Pelas redes sociais, qualquer um pode comunicar, mas não é qualquer um que é jornalista. Principalmente porque nós temos preceitos éticos, responsabilidades e formas de fazer. É uma tentativa de desqualificar a carreira do jornalista, de impedir que as pessoas tenham acesso a esse curso na universidade. O acesso à universidade está muito prejudicado, ao contrário de como foi nos governos anteriores. Estamos regredindo a um estado absurdo.

Isso é muito grave e a gente tem que denunciar. Agora, também tem o efeito contrário. O jornalismo, como eu disse no discurso, ao ser atacado desse modo, ele redobra sua força. Os jovens que estão chegando hoje na universidade têm consciência do papel deles e que vai ser difícil. É isso mesmo o que atrai eles para a careira, que está mudando e que tem cada vez mais jornalistas conscientes.

E os jovens que estão se formando já estão no meio do tiroteio, sendo castigados todos os dias. Eles têm inúmeras práticas durante a faculdade e eles têm dificuldades. Isso é só mais um elemento de prova do ataque sistemático desse governo à imprensa e à liberdade de imprensa.

Uma coisa que a gente tem percebido e não só no Sindicato dos Jornalistas, mas em todo o sindicalismo, é uma taxa muito baixa de sindicalização e os trabalhadores participando cada vez menos. No jornalismo a gente ainda tem uma característica que muitos não se enxergam como classe trabalhadora. Muitos estudantes saem das faculdades com o sonho de ser o artista do jornalismo, um âncora, essa questão da imagem. Você acha que isso está mudando?

Eu acho que está mudando. Episódios como esse, com o discurso que foi feito em condições adversas, mostram que a consciência coletiva dos jornalistas vem melhorando bastante. Concordo com a constatação dessa deficiência que nós temos como categoria, mas quando nos mobilizamos como aconteceu agora, acho que isso é promissor.

A gente sabe também que os sindicatos estão sendo desmantelados no Brasil, e o jornalista sofre mais ainda. A gente tem um poder muito grande das empresas, em determinadas regiões do país quase não tem concorrência, o que nos deixa refém daquela empresa que as vezes é a única da região ou do estado para trabalhar, e tem que basicamente aceitar tudo e não pode lutar pelos direitos porque pode sofrer represálias. A gente vê isso no país inteiro.

Essa análise dos problemas que temos enquanto categoria é bem profunda e tem que ser feita urgentemente. Mas os episódios recentes e esse ataque absoluto que a gente vem sofrendo nos une. A gente pode inclusive aproveitar essa oportunidade para resolver esses entraves juntos enquanto categoria.

No ano passado, foi realizado na Unisinos São Leopoldo um evento sobre fakenews, em parceria com a Comitê Gaúcho do FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação). Como hoje se dá o estudo da teoria com essa transformação total da comunicação, com os meios digitais, sabendo que hoje a população se informa mais pelo Whatsapp do que pelos meios de comunicação?

Hoje temos uma organização diferente desse vetor de informação massiva, mas não significa que ela não seja controlada e direcionada para fins específicos que, como a gente tem percebido, nem sempre são os mais nobres. Existe um problema conceitual com a fakenews. São simplesmente mentiras, e não notícias. Notícias não são mentiras. A gente está dizendo notícias falsas, mas ou são notícias verdadeiras, pois se referem a fatos, ou são mentiras.

É o termo que está na boca de todo mundo e a gente pode usar ele para discutir, principalmente porque ele cola muito, a gente vê como o Trump (presidente dos Estados Unidos) usa ele, e como Bolsonaro usa ele também. A reflexão que fica é que esse tema é muito mais utilizado contra a mídia do que para se referir a mentira. Não é a toa que Bolsonaro e Trump são os maiores propagadores de fakenews, porque é simplesmente tu dizer que uma notícia e falsa, e se tu diz isso, tu diz que o jornalismo é falso.

Essa é uma preocupação que nós temos, porque ficou muito fácil emular o formato de notícia. A gente, com um site que se assemelha muito a um site profissional, um aspecto de jornalismo já é suficiente para enganar muita gente. Acho que a melhor forma de combater isso é o jornalismo melhorando. Uma crítica que eu faço é que não adianta os jornais produzir um monte de conteúdo sobre fakenews e a gente ter nos sites aqueles links patrocinados que remetem para propagandas da pior espécie, tipo: você não vai acreditar como está fulana aos 39 anos. Por mais tolo que seja isso, está empacotado junto com a notícia, então a imprensa tradicional está vendendo fakenews também.

Primeiro caminho é tirar esse lixo, depois vamos ter outras questões, que talvez a gente possa aproveitar esse momento de crise para melhorar o jornalismo, que é a contaminação da publicidade no jornalismo. Tem um livro muito bom, do Leandro Marshall, “Jornalismo na era da publicidade”, em que ele categoriza formas transgênicas do jornalismo. Que é uma publicidade disfarçada de jornalismo. Ele vai estudar jornais e vai observar isso desde produtos específicos, cadernos que não são cadernos, mas só propaganda. A famosa pauta 500, que a gente faz para agradar a casa, seja um cliente ou algo da própria empresa. Interesses cruzados como empresas de mídia que têm empresas de eventos e promovem festivais de música, onde só eles têm espaço, têm rádios que promovem seus comunicadores e artistas com fins meramente financeiros.

A defesa que uma empresa de comunicação faz de algo como a reforma da Previdência, ou administrativa, pode ser chamada de matéria 500, já que está atendendo ao mercado financeiro?

A gente tem uma novidade que são veículos noticiosos bancados por empresas de investimento. O que é o Antagonista? Tem outros, mas vamos ficar só nesse aí que tem uma relação mais conhecida e complicada com esse mercado.

A imprensa também tem que se libertar, no jornalismo econômico, desses dogmas neoliberais de direita, de que só isso é a salvação. Eles vêm sendo aplicados goela abaixo, mas não estão funcionando. Basta olhar para o Chile, que até ontem era o queridinho do jornalismo econômico. Não estou dizendo que nada disso sirva, mas porque, ao fazer jornalismo econômico, a gente deixa de ser crítico? Vamos questionar os dogmas e os mitos do mercado. Não é o papel do jornalismo?

Melhorar o jornalismo passa por isso também, porque isso contamina a cobertura política. Basta ver o que estava acontecendo até agora, o governo Bolsonaro comete absurdos em todas as áreas, mas a imprensa avalia que “mas na economia a gente está no caminho correto”. Cadê os resultados disso? Acho que está na hora da imprensa começar a discutir a questão econômica com maior profundidade.

A gente vê uma falta de pluralidade muito grande na cobertura econômica e uma falta de transparência quanto a esses interesses cruzados. A serviço de quem? A gente sabe que informação econômica é muito sensível, provoca perdas e ganhos imediatos na bolsa, no câmbio. Quem é que está lucrando com isso? O jornalismo não pode servir a esses interesses.

Com isso tudo o que você está falando, parece que o Código de Ética dos Jornalistas está cada vez mais atual e necessário…

Sim, o Código de Ética dos Jornalistas é deixado de lado muitas vezes. Falo com maior respeito pelos colegas e pelos veículos também. Mas a gente tem que discutir a todo o momento para melhorar. Na lida diária do jornalismo, a gente deixa o código de ética um pouco para trás ao enfrentar outras pressões que não estão previstas lá. Mas a gente tem que voltar sempre nisso e discutir permanentemente nossa prática. É para isso que a academia serve, inclusive. Temos uma produção acadêmica enorme no Brasil que é pouco ou quase nada acessada pelo mercado. Essa crítica é feita na academia e poderia contribuir muito com o jornalismo, principalmente no aspecto ético.

Na tua opinião, como universidades e sindicatos de jornalistas e federações poderiam estar atuando mais juntos?

O sindicato tem uma atividade extra que é a desregulamentação da nossa profissão, pejotização, coisas que somos abrigados a seguir, e não só na nossa atividade, mas na economia e no trabalho como um todo. É mais difícil agregar gente desprotegida dos seus direitos. Se a situação continuar se deteriorando do jeito que está, as pessoas vão sentir cada vez mais falta dos direitos e ter que se reorganizar de algum modo.

O sindicato tem alertado muito para isso e passa também por um compromisso da categoria, de procurar o sindicato e querer participar. Mesmo que não concorde com uma coisa ou outra, querer participar da vida sindical porque a defesa da categoria está acima de tudo. Então os profissionais deveriam se integrar mais como categoria, e a universidade se tornar um polo de defesa plena das liberdades de imprensa e das questões que dizem respeito às atividades jornalísticas.

É um absurdo que uma universidade não tenha como missão promover essas discussões. Na Unisinos tem essas iniciativas. O maior âmbito de discussão ainda é a universidade e ela pode reunir os profissionais que estão aí, os que estão chegando e o sindicato. Eu vejo esse caminho se desenhar, mas ele depende do nosso esforço, tomara que a gente consiga.


Confira discurso proferido por Felipe Boff

A imprensa brasileira vive seus dias mais difíceis desde a ditadura militar. Entre 1964 e 1985, jornalistas foram censurados, perseguidos, presos, torturados e até assassinados, como Vladimir Herzog. Hoje, somos insultados nas redes e nas ruas; perseguidos por milícias virtuais e reais; cerceados e desrespeitados por autoridades que se sentem desobrigadas de prestar contas à sociedade. Todos sabem – mesmo aqueles que não acompanham as notícias – quem é o principal propagador dessa ameaça crescente à liberdade de imprensa. É o mesmo que também considera como inimigos os cientistas, professores, artistas, ambientalistas – como se vê, estamos bem acompanhados.

No ano passado, segundo levantamento da Federação Nacional dos Jornalistas, o presidente da República atacou a imprensa 116 vezes em postagens nas suas redes sociais, pronunciamentos e entrevistas. Um ataque a cada 3 dias.

Querem exemplos? “É só você fazer cocô dia sim, dia não.” “Você está falando da tua mãe?” “Você tem uma cara de homossexual terrível.” “Pergunta pra tua mãe o comprovante que ela deu para o teu pai.” É dessa forma chula e rasteira que o presidente da República, a maior autoridade do país, costuma responder aos jornalistas. Seus xingamentos tentam desviar a atenção das respostas que ele ainda deve à sociedade. Nos casos citados, explicações sobre o retrocesso da preservação ambiental no país, sobre os depósitos do ex-assessor Fabrício Queiroz na conta da hoje primeira-dama, sobre o esquema da “rachadinha” de salários no gabinete do filho hoje senador, sobre o envolvimento da família presidencial com milicianos.

O presidente das fake news, que bate na imprensa cada vez que ela informa um fato negativo sobre ele e seu governo, é o mesmo que deu 608 declarações falsas ou distorcidas – quase duas por dia – ao longo de 2019. O levantamento é da agência de checagem Aos Fatos. Querem exemplos? “O Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente no mundo.” “Leonardo Di Caprio tá dando dinheiro pra tacar fogo na Amazônia.” “O Brasil é o país que menos usa agrotóxicos.” “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira.” “Nunca teve ditadura no Brasil.”

Em 2020, depois de completar um ano de mandato com resultados pífios na economia e desastrosos na educação, na cultura, na saúde e na assistência social, o presidente não serenou. Redobrou os ataques à imprensa. Aplicou o duplo sentido mais tosco à expressão jornalística “furo” para caluniar a repórter que denunciou a manipulação massiva do WhatsApp na campanha eleitoral. Atacou outra jornalista, mentindo descaradamente, para negar a revelação de que compartilhou vídeos insuflando manifestações contra o Congresso e o STF.

E segue promovendo o boicote à imprensa, com exceção daqueles que aproveitam o negócio de ocasião para vender subserviência e silêncios estratégicos. Aos veículos que não se dobram ao seu despotismo, o presidente da República impinge pessoalmente retaliações financeiras diretas, pressão sobre anunciantes e difamação de seus profissionais. Pratica, enfim, toda sorte de manobras sórdidas para tentar asfixiar o jornalismo e alienar a população dos fatos. E já nem se preocupa em disfarçar suas intenções. Querem um último exemplo? Declaração de 6 de janeiro deste ano, dita pelo presidente aos jornalistas “Vocês são uma raça em extinção”.

Não, presidente, não somos uma raça em extinção. Ao contrário. Somos uma raça cada dia mais forte, mais unida, mais corajosa, mais consciente. Basta olhar para estes 21 novos jornalistas que estamos formando hoje. Basta ler os dizeres na camiseta deles: “Não existe democracia sem jornalismo”.

Esta é a mensagem a ser destacada nesta noite: quando tenta calar e desacreditar a imprensa, o atual presidente da República ameaça não só o jornalismo e os jornalistas. Ameaça a democracia, a arte, a ciência, a educação, a natureza, a liberdade, o pensamento. Ameaça a todos, até aqueles que hoje apenas o aplaudem – estes, que experimentem deixar de bater palma para ver o que acontece.

Para encerrar, gostaria de citar o exemplo e as palavras do grande escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh. Precursor da reportagem literária e investigativa e destemida voz contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado, Walsh pregava que “Ou o jornalismo é livre, ou é uma farsa, sem meios-termos”. Dizia também que “um intelectual que não compreende o que acontece no seu tempo e no seu país é uma contradição ambulante; e aquele que compreende e não age, terá lugar na antologia do pranto, não na história viva de sua terra”.

Rodolfo Walsh foi sequestrado e assassinado pela ditadura argentina em 25 de março de 1977. Na véspera, publicara corajosamente uma “carta aberta à junta militar”, denunciando os crimes do sanguinário regime, que então completava apenas seu primeiro ano. Estas foram as últimas palavras que Walsh escreveu: “Sem esperança de ser escutado, com a certeza de ser perseguido, mas fiel ao compromisso que assumi, há muito tempo, de dar testemunho em momentos difíceis”.

Jornalistas, este é o nosso compromisso. Não deixaremos que a tirania nos cale mais uma vez.