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Os efeitos da publicidade infantil na educação

São muitos os desafios de pais e educadores diante da enxurrada de vídeos com propagandas e maus hábitos a que as crianças estão expostas nas redes sociais

Pixabay
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São Paulo – A publicidade infantil é nociva ao desenvolvimento da criança, não somente por abusar da deficiência de julgamento e de experiência da criança, mas também por ser, em si, propaganda enganosa. A avaliação é da coordenadora executiva da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda.

Para Andressa, a publicidade infantil ativa no imaginário da criança o oferecimento de sensações, desejos, informações e uma série de elementos de expectativa os quais não são correspondidos através do produto. Ela considera o ambiente da internet, como o YouTube, ainda mais delicado, já que não existe nenhuma regulação para conter os eventuais abusos. Inclusive os reflexos no processo de formação e educação dos pequenos.

“Ao vincular os produtos a esses elementos, a propaganda inverte uma lógica de desenvolvimento e amadurecimento imaterial e muito mais profundo ”, explica. “Esse mecanismo ensina às crianças uma ideia deturpada do lidar com sentimentos, expectativas, objetivos, frustrações e uma série de capacidades, informações e sentimentos necessários para seus desenvolvimento pleno, para a cidadania e para uma vida produtiva no futuro, que são os três elementos de liberdade.”

Andressa Pellanda: “As propagandas e os produtos propagandeados acabam por apagar possibilidades criativas, colocando em risco imagens oníricas e o desenvolvimento crítico e artístico” (Reprodução/Youtube Instituto Claro)

A importância do brincar

Andressa, que é pesquisadora na área de políticas educacionais, destaca ainda a preocupação com o brincar. “Boa parte da publicidade voltada à criança está imersa na era dos ‘brinquedos em série’, calcada em tipos de brinquedos, alimentos, eventos que não trazem uma contribuição substancial e profícua para o desenvolvimento infantil.”

E elenca: são feitos de plástico, limitando o contato sensorial das crianças com outras experimentações, como o calor da madeira, a fluidez dos líquidos, das tintas etc. “Ao mesmo tempo, as próprias propagandas e os produtos propagandeados acabam por apagar possibilidades criativas, colocando em risco imagens oníricas e o desenvolvimento crítico e artístico.”

Andressa Pellanda critica ainda a supervalorização das narrativas curtas, com poucas camadas de complexidade, curtas, diretas. “Compre isso e ganhe aquilo, pague e compre um mundo de possibilidades. A determinação dessa relação aparentemente simples entre posse e gozo, produto e solução gera um processo de artificialização da vida e da existência, deixando de ensinar à criança as complexidades do viver.”

Além disso tudo, avalia, nesse mundo do consumo e da publicidade as crianças acabam submetidas a uma lógica de padronização hegemônica da sociedade. “Um processo não somente unilateral como perverso de comunicação, que não ensina sobre questionamento, diferenciação, distanciamento crítico, e sim sobre preconceito, submissão a padrões, e falta de tolerância, entre outros.”

Paulo Donizetti de Souza/RBA
Adriana e Sérgio: preocupação com ausência de regulação por parte do Estado, como já ocorre nas democracias evoluídas

De olho nas propagandas

Tudo isso está no centro das preocupações da socióloga Adriana Marcolino e do professor de Relações Internacionais Sérgio Godoy (assista à entrevista no vídeo abaixo). Pais de duas meninas de 9 e 5 anos de idade, eles relatam as dificuldades diante do bombardeio de propaganda, ainda que velada, voltada às crianças.

“Tem programa que a apresentadora abre o brinquedo, brinca, fala as maravilhas daquele brinquedo e a criança está ali assistindo. Então é uma propaganda, né”, compara Adriana.

As meninas têm acesso ao YouTube Kids e em geral assistem o que querem. “A gente tenta moderar se vemos alguma coisa que mesmo direcionada para crianças tem um conteúdo que a gente julga não ser legal elas assistirem”, conta Adriana, dizendo que nem sempre conseguem escapar do que não gostariam que assistissem.

“As bonecas, os brinquedos, elas assistem e pedem. Tem um efeito imediato”, relata Sérgio. “As bonecas colecionáveis, elas vão conhecendo, têm uma ou outra, mas conhecem tudo daquele universo por conta dos canais do YouTube e que não são propaganda explícita.”

Adriana critica a regulação frágil, praticamente inexistente, sobre as novas mídias. “Alguns canais estão adaptados às novas regras do Youtube, mas ainda existe muita propaganda.”


Pais buscam saídas

Como moram em casa, numa rua tranquila, Sergio conta que as meninas recorrem aos eletrônicos mais quando já brincaram muito e estão cansadas.

“Hoje mesmo elas estavam vendo um vídeo desses youtubers bem conhecidos e ele lançando o brinquedo dele. Olha que legal o brinquedo que eu fiz pra você, está disponível nas melhores lojas”, imita. Imediatamente a filha mais nova pediu para comprar o brinquedo. “E ainda repetiu exatamente o que o cara disse no vídeo: papai está nas melhores lojas.”

Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, não há o certo ou errado, proibir ou liberar o acesso das crianças às plataformas. “A abordagem preto no branco e de culpabilização não é a melhor”, avalia.

“A publicidade voltada à criança já é ilegal e é preciso um trabalho para que essa premissa seja cada vez mais cumprida. Como ainda há canais de exposição das crianças, o máximo de proteção é o ideal: caso seja possível evitar, é melhor, quando não, a conversa franca, a educação crítica tanto dos pais como da comunidade e da escola podem ajudar a minimizar os efeitos”, recomenda a pesquisadora.

“Por fim, como acontece em diversas comunidades e povos tradicionais, e do qual o mundo ultraglobalizado e pasteurizado perdeu um tanto, mas está previsto nos princípios de nossa Constituição Federal, a sociedade deve se responsabilizar coletivamente pela educação e pelo desenvolvimento de suas crianças”, afirma. “Isso significa que não só é responsabilidade direta dos pais ou responsáveis a educação sobre o consumo, como também é dos donos das empresas de brinquedos em série, dos alimentos com alto teor calórico e baixo teor nutricional, de publicidade e merchand não abusarem das crianças, como é do Estado a regulação, proibição e fiscalização.”


Consequências para toda sociedade

Advogada do programa Criança e Consumo do Instituto Alana, Livia Cattaruzzi lembra que quando surgiu o tema youtuber mirim, em 2015, os vídeos nos quais as crianças, ou mesmo adultos, abriam caixas agradecendo às empresas nominalmente, sumiram da plataforma.

“Mas não sumiram porque as regras estão sendo respeitadas hoje. E sim porque hoje existe um acordo tácito entre as empresas de não divulgar porque o conteúdo fica mais espontâneo, como se a criança estivesse brincando”, denuncia.

“A gente entende que tem havido avanços por pressão da sociedade. O YouTube Kids nasceu da pressão da sociedade em relação a conteúdos impróprios e em relação à publicidade no YouTube”, afirma a advogada. “Lá você tem regras específicas para publicidade, tem um cadastro pra entrar no YouTube Kids, e isso numa plataforma aberta como YouTube. Mas o problema da publicidade velada dentro do conteúdo ainda existe.”

Livia explica que publicidade infantil é aquela que conversa diretamente com a criança, que busca persuadi-la ao desejo e consumo de serviços. E a partir da interpretação sistemática entre várias regras, várias normas – como a Constituição Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Código de Defesa do Consumidor, a resolução 163 do Conanda, o Marco Legal da Primeira Infância – essa publicidade é proibida no Brasil. “E o que a gente percebe nesses vídeos do YouTube, ainda que esse conteúdo não seja patrocinado – e na grande maioria das vezes ele é –, é que existe uma naturalização do consumismo e do desperdício.”

A advogada cita programas com vídeos de crianças e também de youtubers adultos acompanhados de crianças, que brincam com alimentos. “Você juntar no 80 balas no liquidificador; 90 sabores de sorvete; encher uma banheira com Nutella, com Todynho, tem ali uma naturalização, um estímulo ao consumismo, ao desperdício, ao materialismo.”

E critica também vídeos do tipo comprei mil reais em figurinhas, em bonecas Lol etc. “Então a gente entende a publicidade infantil, e isso é apontado em vários estudos e pesquisas, com um dos elementos que acarreta consequências sociais negativas. São impactos sentidos por toda a sociedade.”

A advogada enumera esses impactos: o consumismo na infância, o materialismo, o super endividamento das famílias, a violência na busca por produtos caros, o consumo de alimentos não saudáveis, a obesidade infantil. “E a gente percebe que nesses vídeos fica muito evidente essa relação da publicidade infantil com tantos impactos. Justamente porque as crianças querem mostrar o que têm, expor cada vez mais o quanto têm mais que o outro, vídeos de produtos que são colecionáveis com a coleção inteira. Uma criança que assiste a isso está recebendo que tipo de mensagem? Que valores ela está recebendo a partir desses vídeos?”