Desigualdade de gênero

Divisão do trabalho doméstico cresce, mas paulistanas mostram que machismo permanece

Pesquisa da Rede Nossa São Paulo aponta para uma crescente divisão dos afazeres de casa e de cuidados, mas com responsabilidade ainda predominante das mulheres. Violência também cresce na cidade e são elas que percebem mais

Arquivo EBC
Arquivo EBC

São Paulo – Neonilda da Conceição Rocha Lima não exagera quando diz que ao chegar em casa, no Morro Doce, extremo noroeste da cidade de São Paulo, por volta das 17h40, parece “sentir um saco de cimento” sobre os ombros. Aos 41 anos, Nilda – como prefere ser chamada – acumula uma tripla jornada de trabalho que tem horário para começar –  às 4h de segunda a sexta-feira – mas não para terminar.

Mãe de duas meninas, uma de 14 anos e outra, que está perto de completar 8 anos,  Nilda se divide entre os cuidados com as filhas, as tarefas de casa e seu trabalho como cozinheira e empregada doméstica de uma família para a qual trabalha há 19 anos, no Alto da Lapa, bairro de classe média alta da zona oeste paulistana. 

“Acordo às 4h da manhã, faço café, acordo minhas filhas, dou café e ajudo a arrumar as mochilas e elas saem de casa às 4h45, o transporte pega elas. Eu volto pra casa, vou arrumar a cama, lavar louça, boto uma roupa ‘pra bater’ e saio de casa às 5h15. Entro às 7h no trabalho e saio às 15h30. Pego a (filha) menor (que passa o dia num projeto social da prefeitura, o Centro para Criança e Adolescente (CCA)), e chego no Morro Doce, no terminal de ônibus. Encontro com a outra, que já saiu da escola e vai sozinha até lá (ao terminal). Quando volto para casa é aquela rotina, tirar roupa do varal, fazer janta… todo dia tem que fazer, porque o marido leva marmita e as crianças precisam jantar”. 

“É bem puxada minha rotina”, sintetiza Nilda. A qualidade da vida da doméstica reflete uma relação com seu gênero feminino, como destaca a pesquisa divulgada nesta quarta-feira (4) pelo Ibope e a Rede Nossa São Paulo, Viver em São Paulo: Mulher.

Entre os dados coletados, o estudo temático, o terceiro da série Viver em São Paulo, aponta para uma “evidente desigualdade” entre homens e mulheres com implicações diretas no cotidiano da cidade.
A pesquisa ouviu um total de 800 pessoas – 430 mulheres e 370 homens. Entre os homens, 52% afirmam que os afazeres domésticos são de responsabilidade dos dois, mas até um terço reconhece que são ainda as mulheres que cumprem a maior parte. 

Nilda sabe disso. Seu companheiro, assim como ela, também trabalha fora e acorda cedo como toda a família. Motorista de caminhão, está de pé às 4h para seguir ao trabalho. Volta para casa sempre tarde mas, diferentemente da companheira, é neste momento que ele encerra sua jornada do dia. “Ele dividia outras tarefas. Não as de casa, porque de casa não divide não. Por exemplo, reuniões, médicos (das crianças), isso a gente dividia. Mas hoje sobra tudo pra mim, por conta do trabalho dele”, explica a cozinheira. 

O contraste no acúmulo de jornadas de trabalho entre os gêneros não para por aí, de acordo com a pesquisa. A edição também aplicou aos homens algumas perguntas dirigidas normalmente apenas às mulheres e notou divergências tanto sobre a divisão dos afazeres domésticos, quanto a diferentes percepções de violência e assédio sexual contra as mulheres na cidade.

Das 430 entrevistadas, 83% delas consideram que a violência de gênero vem crescendo no último ano, ante 67% dos homens que compartilham essa percepção. Também é maior entre as mulheres a avaliação negativa sobre a gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB) na área de Segurança Pública: 60% delas apontam críticas, enquanto o percentual é de 52% entre os homens. 

Coordenadora da Rede Nossa São Paulo, Carolina Guimarães avalia que a contraposição sobre a segurança pública também é um retrato da diferença na locomoção pela cidade. 

“O deslocamento diário é bastante diferentes entre o dos homens e o das mulheres. Está comprovado por várias pesquisas, tanto as de mobilidade, como as de origem e destino (do Metrô), que os homens têm deslocamentos mais pendulares – de casa para o trabalho e vice-versa – enquanto as mulheres têm deslocamentos variados por questões de filhos e cuidados, o que também é um desafio não computável na vida da mulher. E esses deslocamentos diferentes, em caminhos diferentes, refletem novos desafios”, analisa. 

Nilda conta que, no início deste ano, ela e o companheiro decidiram desembolsar R$ 350 para que uma van leve suas filhas à escola. “Tudo era a pé, porque não tinha ônibus pelo bairro, era muito difícil e fui ficando muito estressada. Resolvi dar esse alívio para mim mesma”, diz. 

O valor, no entanto cobre só a ida. A volta permanece sob os cuidados da doméstica. Ao sair do trabalho, ela anda cerca de 40 minutos a pé até o serviço social da prefeitura onde mantém a filha pequena, para depois encontrar a primogênita. Antes de chegar em casa, ainda cabe à cozinheira passar no mercado para os itens de necessidade imediata. “Todos os dias com sacola”, afirma.

A pesquisa Ibope/Rede Nossa São Paulo mostra ainda que pouco mais da metade das mulheres (51%) evitam andar a pé pela cidade à noite por medo da violência, enquanto 41% dos homens compartilham do mesmo sentimento. A coordenadora Carolina Guimarães observa que a sensação de insegurança deriva de um consciente coletivo despertado pela chamada epidemia de violência contra a mulher, mas também da inação do poder público. 

No Morro Doce, que integra o distrito Anhanguera, a falta de infraestrutura vai desde a pouca iluminação das vias à praticamente ausência de equipamentos públicos culturais. São 1,26 para a cada 100 mil habitantes, ante o distrito do Butantã que, na mesma São Paulo, lidera com 53,67 equipamentos culturais para cada grupo de 100 mil habitantes. Os dados constam no Mapa da Desigualdade do ano passado. 

Bairro onde mora cozinheira Nilda tem queixas de falta de iluminação e ausência de equipamentos públicos (Youtube/Reprodução)

“Nesses lugares mais vulneráveis, essas pessoas acabam tendo de pegar mais transporte e baldeações de transporte, percorrer lugares que não recebem tantos investimentos. Então realmente existe a perspectiva da mulher, que é muito específica, é uma perspectiva de gênero, enquanto ela está percorrendo a cidade”, destaca Carolina. 

“Sim, (pelo fato de ser mulher) sempre sinto mais medo, mulher sai na rua já preocupada, tendo que olhar pra trás toda hora. Você já abre o portão olhando se tem alguém por ali e, principalmente, quando eu saio com as minhas filhas, eu me sinto bem vulnerável (…) Ele (companheiro) adora morar no bairro e eu falo pra ele, ‘você gosta porque não tem esse problema de ônibus que demora, de rua escura, de subida'”‘, lamenta Nilda. 

Punições

A pesquisa da Nossa São Paulo levantou ainda, que contra a violência de gênero doméstica e familiar, as mulheres defendem prioritariamente o aumento de penas para quem comete a agressão, além de maior agilidade no andamento das investigações e ampliação dos serviços de proteção à mulher. Entre os homens, as demandas são as mesmas, mas eles também acham que seria eficiente a promoção de campanhas de conscientização. 

A divergência, na leitura da entidade, mostra que as mulheres estão “cansadas” de evidenciar que determinados comportamentos expressam machismo, enquanto os homens defendem que precisam ainda serem educados, uma maneira também “mais branda de não criminalizar esses comportamentos”, explica a coordenadora. 

Carolina afirma que para que as relações entre homens e mulheres sejam igualitárias é preciso uma abordagens em diversas frentes. “Educação na escola, educação na mídia e políticas públicas voltadas para as mulheres e na saúde também. Mas, um tema muito importante é a representatividade na política. A ideia é que as pessoas que votam se sintam representadas e que essas representações incluam (a desigualdade de) gênero nessas novas ações e políticas”, propõe a coordenadora da Rede Nossa São Paulo

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