Racista

‘Advocacia da União quer esvaziar significado do feriado da consciência negra’

Para Douglas Belchior, data é reflexão sobre exploração, opressão e ódio mesmo após a abolição. "Povo negro ainda não alcançou a condição de cidadão"

Johann Moritz Rugendas/Creative Commons
Johann Moritz Rugendas/Creative Commons

São Paulo – O parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) contrário à lei municipal que criou o feriado da consciência negra na cidade de São Paulo é racista, na opinião do professor Douglas Belchior. Integrante do movimento negro Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos,  Belchior considera o posicionamento do órgão como parcial, político, alinhado e orientado pelo governo de Jair Bolsonaro.

O juízo emitido no final de dezembro refere-se a uma ação protocolada no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos (CNTM) em 19 de novembro passado. Trata-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 634, que pede que a Corte decida sobre a constitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 14.485, de 19 de julho de 2007, e dos artigos 1º a 4º da lei nº 13.707, de 7 de janeiro de 2004, que instituem o feriado do Dia da Consciência Negra na capital paulista.

Na petição, a confederação de trabalhadores argumenta que há relevante controvérsia entre na “multiplicidade de Jurisprudência dos Tribunais”, em especial na sentença de uma ação ajuizada pelo Centro das Indústrias do Estado de São Paulo (Ciesp), ligado à Fiesp, em que a 11ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, que declarou a “incompetência da Municipalidade para instituir o referido feriado e declarou a ineficácia dos seus efeitos para todos os trabalhadores das indústrias paulistanas.

A lei que está sendo questionada, conforme Belchior, assim como outras municipais e estaduais nesse sentido, em vigor no país afora, encontra abrigo na lei 12.519, “que reconhece o dia de Zumbi como dia da resistência, por resgatar uma figura de luta pela liberdade, pela justiça, de um povo que foi escravizado por quase 400 anos”.

Para ele, um debate sobre a constitucionalidade de leis que se aplicam a estados e municípios deveria ser feito em torno de todos os outros feriados e temas relativos aos feriados. “Inclusive religiosos, que são guardados por lei em um estado que é laico – uma contradição – que não enfrenta nenhuma oposição”, afirma, destacando seu respeito pelas religiões, mesmo aquelas que não são contempladas por feriado.

Segundo levantamento da CUT, é feriado em 20 de novembro em todos os municípios dos estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso e Rio de Janeiro. Não há o feriado em nenhum dos municípios do Acre, Ceará, Distrito Federal, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima e Santa Catarina. No restante, há feriado em parte dos municípios: Bahia (3), Espírito Santo (2), Goiás (4), Maranhão (1), Mato Grosso do Sul (1), Minas Gerais (11), Paraíba (1), Paraná (2). O Tocantins tem 8.

Belchior conta que uma das lutas da Uneafro em Guarulhos, onde também atua, é consolidar o direito ao feriado. “Lá, o atual refeito publicou decreto pedindo que as pessoas comemorem o feriado no final de semana para não perder o dia útil. Há uma pressão do comércio local, da indústria, das empresas de não pagar esse feriado. Assim como em são Paulo, onde há essa discussão da inconstitucionalidade de uma lei que já tem uma tradição, uma adesão”.

Racismo

Ele destaca que o feriado é muito importante também pelo seu caráter educativo. Uma data que em que, ao parar as atividades profissionais, a população pode refletir a respeito da importância histórica da data, os elementos e símbolos ligados à população afro.

E que o racismo e a discriminação estão por trás de toda tentativa de esvaziar toda essa reflexão – e não aspectos puramente econômicos. “Se a questão econômica fosse preponderante, por que não questionar todos os outros feriados? Será que em 20 de novembro a indústria produziria mais que nos outros? O comércio venderia mais, as bolsas renderiam mais?”

O debate sempre acalorado sobre o tema, para Belchior, é uma questão racial: o país não pode parar um dia para refletir sobre as mazelas históricas que a exploração, a opressão, e o ódio dos brancos, que se torna alvo do debate. “Os quase 400 anos de escravidão e outros cento e 30 e poucos após a abolição, em que essa população ainda não alcançou o espaço da cidadania, a condição de cidadão.”

Reprodução/TVT

“É óbvio que isso incomoda demais. Não é que eles não valorizam , não enxergam o valor disso. Eles percebem o risco e o perigo de que a população brasileira pare para refletir sobre o que significam a escravidão e o racismo histórico e um dia se rebele contra o poder hegemônico dos brancos. É disso que se trata. O medo histórico dos brancos que faz com que eles queiram negar não o dia de folga, mas o dia da reflexão e da valorização dessa data. Por que mesmo nas cidades que não tem o feriado, há debates sobre em diversas esferas.
Douglas Belchior/Uneafro

A tentativa de desqualificar ou deslegitimar o feriado é também a tentativa de desgastar o tema e reduzir a importância do objeto das reflexões. Ou seja, mesmo que não haja definição pela inconstitucionalidade, cria-se um debate que tenta encolher sua importância. Um resultado que pode não levar à derrubada do feriado, mas a um questionamento, à dúvida de que tal problemática nem exista, que não seja algo importante, ou que tudo em relação a isso seja um grande exagero.  “Os racistas trabalham dessa maneira”, diz Belchior.

É a grande tentativa, segundo ele, de desconstrução dos nossos avanços obtidos por meio de leis nos governos progressistas que agora estão sendo todos destruídos. E que todas essas provocações estão articuladas a uma agenda maior. “Se a gente pensar no saldo dos últimos 15 anos, cotas nas universidades, no serviço público, o debate no mercado de trabalho, no campo da educação, na segurança pública, o que prevaleceu nesses avanços foi o empoderamento do povo negro. É isso que eles tentam desfazer a cada momento. E temos de estar a postos”.

Douglas Belchior avisa que essa tentativa de desconstrução vai encontrar resistência. “O movimento negro não vai deixar barato. Nós precisamos reivindicar do STF coerência em relação a seus posicionamentos”.

Embora o STF tenha “prestado desserviço enorme à democracia no Brasil, se aliando ao que há de pior na política” e tenha responsabilidade em tudo “o que vivemos hoje no Brasil com esse governo fascista”, há muita esperança.

“Ao mesmo tempo, o STF tem sido progressista em pautas de costumes e muitas relacionadas à questão racial. Se for coerente com a decisão sobre a constitucionalidade das cotas, não vai derrubar o  feriado, que tem a ver com a construção histórica de uma cultura antirracista, pela diversidade, de reparação histórica. O movimento negro já está posicionado e vamos pra cima defender nossas bandeiras”.

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