Barbárie institucional

Governo de Minas Gerais desiste de racionamento de água em presídios do estado

Suspensão ocorre após decisão judicial contrária à aplicação da medida em presídios de Contagem. Deputada estadual Andréia de Jesus (Psol) contesta justificativas do governo: "A maioria das celas não tem descarga, o banho é de água fria"

Luiz Santana
Luiz Santana
Entrada da penitenciária Professor Jason Albergaria, em São Joaquim de Bicas: racionamento já é realidade no local

São Paulo – O governo do estado de Minas Gerais voltou atrás na decisão de implementar um racionamento de água em suas unidades prisionais, permitindo apenas o uso por seis horas diárias. O memorando que determinava a aplicação da medida é de 20 de novembro, mas foi divulgado somente na última sexta-feira, anunciando que o sistema passaria a vigorar a partir do último domingo (1º). A justificativa do governo para o racionamento seria o contingenciamento do gasto público por conta da atual crise financeira.

Na terça-feira (3), a Defensoria Pública e o Ministério Público do estado apresentaram um pedido de providência para garantir a manutenção do abastecimento integral de água no Complexo Penitenciário Nelson Hungria e no Ceresp de Contagem. A peça afirmava que a medida ofendia “normas de Direitos Humanos internacionalmente consagradas, Direitos Fundamentais constitucionalmente protegidos e a própria lei”.

O pedido foi acolhido pelo juiz da Vara de Execuções Criminais de Contagem, Wagner de Oliveira Cavalieri. Em sua decisão, o magistrado mencionou que em inspeções feitas nas unidades de Contagem foram detectados vazamentos e infiltrações que certamente “aumentam demasiadamente os gastos com fornecimento de água”. Assim, a iniciativa proposta pelo governo, “sem qualquer consulta ou compartilhamento com as demais instituições, órgãos de execução penal ou mesmo com o juízo da execução penal, deveria ser precedida de um estudo sobre a precariedade das instalações hidráulicas e as devidas obras de reparação”.

Para a deputada estadual Andréia de Jesus (Psol), a tentativa de racionamento se insere em um contexto de desmonte do Estado. “Ele (Romeu Zema) já fechou alguns postos da Cemig, para que ela não possa dar atendimento de qualidade; já fez alguns cortes em relação aos hospitais regionais, cortando toda a execução orçamentária deles e abrindo um edital para que as OSs os administrassem”, ressalta. “Essa lógica de instalar o caos para privatizar e justificar a entrega de equipamentos e serviços públicos para a iniciativa privada é um dado.”

“O sistema prisional já corre esse risco há anos com as parcerias público-privadas. A primeira, de Ribeirão das Neves, é totalmente controlada por uma empresa privada e a despesa, para o estado, é o dobro das outras unidades prisionais.
É lucrativo para alguns prender, e em uma crise econômica, essa reserva de mercado está sendo muito cobiçada pelos empresários como forma de gerar lucros com a ausência da liberdade dos outros”, pontua a deputada. “Isso não é novo, a escravatura foi isso, gerou muito lucro expropriar as pessoas da sua liberdade.”

Racionamento já era realidade em unidade prisional

Caso fosse aplicado, o racionamento iria tornar ainda piores as condições estruturais que estão longe do que seria aceitável.  Levantamento feito por um mutirão carcerário do Tribunal de Justiça de Minas (TJ-MG), divulgado em agosto, mostrava que o estado contava com uma população carcerária de 75 mil presos em 37 mil vagas do sistema prisional. Mais 90% das unidades de Minas Gerais estão superlotadas, de acordo com o relatório.

“Nós fizemos algumas visitas técnicas pela comissão dos Direitos Humanos da Assembleia e detectamos que na maioria dos presídios a higiene do estabelecimento está totalmente comprometida. Identificamos ratos, acúmulo de lixo nas portas, quem faz a limpeza são os próprios presos”, relata Andréia de Jesus, destacando que muitas vezes as famílias dos internos acaba ajudando na manutenção dos prédios.

No memorando que determina o racionamento, a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) afirmava que os valores mensais em seu orçamento com gastos de água e esgoto das unidades prisionais do estado eram “elevados”, “com um gasto médio de água por preso que seria 88,7% maior do que a média nacional. “O valor total das contas de água do Sistema Prisional alcançou, apenas em junho/2019, R$ 7.682.901,78”, dizia o documento. Dada a realidade da carceragem mineira, é pouco crível que haja presos “esbanjando” o uso de água.

“A maioria das celas não tem descarga, o banho é de água fria. Dizer que uma pessoa privada de liberdade consome mais água do que uma pessoa que tem sua liberdade garantida, que pode dar manutenção na sua casa, é uma falácia, uma falha do sistema. Pode ter desperdício de outras formas, mas não é o preso que está fazendo esse uso inconsciente”, diz a parlamentar. “Isso se houver a comprovação desse gasto, porque já foram usados dados até para justificar a escravidão. E os dados hoje podem ser usados para exterminar as pessoas privadas de liberdade.”

A deputada viu de perto a realidade de uma das unidades prisionais do estado em setembro, quando visitou a Penitenciária Professor Jason Albergaria, no município de São Joaquim de Bicas. A visita ocorreu em função de denúncias de violações de direitos, o que incluía o racionamento de água agravado pelo rompimento da barragem de rejeitos minerais da Vale em Brumadinho, que impediu a cidade de captar água no Rio Paraopeba. De acordo com o diretor da unidade, Ricardo Ernesto Oliveira, a penitenciária e a estrutura de abastecimento foram projetadas para abrigar 396 pessoas, mas na ocasião da visita registrava 801.

“É um cano na parede, não é um chuveiro, que existe em cada uma das celas. Cada cela tem 18 pessoas, e são duas horas para encher a garrafa de água e para tomar banho, esse cano serve pra tudo”, descreve a deputada. “Não tem água na descarga, eles que criam formas de descartar os resíduos orgânicos.”

Alguns segmentos sofrem ainda mais com a falta de condições. “Tem uma ala inteira LGBT que atende todos os presos do estados de Minas Gerais que se declaram gays ou trans e tinham vários com doenças de pele, infecto-contagiosas, todos em uma cela que já havia tido a água cortada e a maioria tinha acesso a ela somente duas horas por dia”, pontua. Quando houve a visita técnica, o diretor Ricardo Oliveira confirmou que o pavilhão destinado a homossexuais, transsexuais e travestis tinha capacidade para 112 presos, mas abrigava 292.

 

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