Contra o sexismo

Caladas jamais, Mulheres da Pá Virada lutam por igualdade na capoeira

Embora estejam em mesmo número que eles nas rodas, elas têm mais obstáculos para chegar a postos elevados. E quando chegam, são submetidas aos mestres que as formaram

Mulheres da Pá Virada
Mulheres da Pá Virada
Roda de Capoeira em Salvador: elas querem mais espaço

São Paulo – Adriana, Alessandra, Catarina, Celidalva, Christiane, Cleonice, Isabela, Ivanilda, Joana, Maria Luísa, Olívia e Viviane.  A mais velha passou dos 60 anos, e a mais nova, dos 30. A maioria é professora de capoeira e trabalha em projetos sociais, e há entre elas pesquisadoras, historiadora e antropóloga. Elas são as Mulheres da Pá Virada.

O termo que passou a ser mais usado a partir do período da pós-abolição, para se referir de maneira pejorativa às mulheres negras e mestiças perseguidas por suas práticas culturais e costumes que lembravam a África, ou mesmo para ofender aquelas que muita gente considerava vadias, desordeiras, brigonas e valentonas, caiu como uma luva para as mulheres do coletivo Marias Felipas. O nome homenageia a heroína da independência da Bahia, a marisqueira Maria Felipa de Oliveira, que segundo a tradição oral era também “capoeira”.

O grupo, que realiza encontros, estudos e atividades com foco nas questões de gênero, educação e capoeira, quer fazer uma revolução dentro das rodas que frequentam: dar visibilidade à história de resistência das mulheres nesse campo e denunciar a violência de gênero que existe, sim, apesar de a prática ser considerada um instrumento de promoção da cidadania e da diversidade.

“Demorei para perceber essa diferença de gênero na capoeira. De 2008 pra cá que percebi a desigualdade e a violência de gênero dentro da capoeira, um assunto que era meio tabu. Levou tempo até que algumas mulheres começaram a se unir para enfrentar essa situação”, conta Adriana Albert Dias. Historiadora e pesquisadora da capoeira, Pimentinha, como é conhecida, tornou-se capoeirista em 1994. Autora do livro Mandinga, Manha e Malícia: uma história sobre os capoeiras na Capital da Bahia, atualmente cursa doutorado na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Os temas de sua tese são capoeira e masculinidades.

Segundo ela, há violência de gênero dentro e fora das rodas de capoeira. “É como se a capoeira tivesse códigos próprios, que estão acima dos direitos humanos, acima da Constituição, como se lá dentro pode.” Tanto é que, conforme explica, nas raras vezes em que as mulheres foram a delegacias denunciar violência física dentro da roda, saíram de lá decepcionadas com a reação dos delegados. “‘Se você estava jogando capoeira, como veio reclamar de violência?’, perguntam. É como se ali fosse um espaço permitido. Afinal, ‘é uma luta e tudo bem'”, relata, com base em narrativas de colegas.

Sem berimbau

Do universo de praticantes atual, metade é homem e metade mulher, segundo estimativas. E embora registros históricos mostrem a presença feminina desde o século 19, acredita-se que elas chegaram bem antes. “A história inviabiliza a presença das mulheres nos espaços. Fala-se muito nos italianos no movimento operário, por exemplo. Mas hoje se sabe muito sobre  a participação das mulheres nas greves operárias. Não é diferente na capoeira”, diz Adriana.

Apesar disso, os espaços de poder e os postos de mestre, contra-mestre e professor continuam praticamente ocupados por homens. “A gente não tem uma pesquisa sobre isso, mas sem dúvida há um numero bem menor de mulheres que ocupam esses postos de destaque. E na maior parte das vezes só os homens que estão no berimbau – que comandam a capoeira. São eles também quem cantam.”

Em geral são os homens que dão seu recado. E cantam no masculino, segundo ela.  E mais: Entre os cânticos ainda existem os de conteúdo machista, que colocam as mulheres como objeto sexual. “Há  músicas que incentivam a violência contra a mulher. São cantigas como ‘se essa mulher fosse minha eu tirava da roda já já e dava uma surra nela’. É uma música do samba que também é cantada na roda de capoeira.”

A capoeirista afirma que até que há mulheres no comando na capoeira. Mas ressalva que esses postos superiores são ocupados majoritariamente por eles. Para elas, a conquista desses espaços é bem mais difícil e demorada. E muitas vezes, quando superam todos os obstáculos e chegam lá, muitas ainda são submetidas às ordens dos mestres que as formaram.

Essa luta pelo fim da desigualdade ganhou um forte aliado. Em outubro de 2018, a Fundação Gregório de Mattos, vinculada à Prefeitura de Salvador, aprovou o projeto Mulheres da Pá Virada: Histórias e Trajetórias na Capoeira, abrindo caminho para a realização de um documentário sobre a presença feminina na capoeira, idealizado pelo coletivo Marias Felipa, com direção de Christine Zonzon e Joana Points, além de Adriana Albert. O prêmio pago pelo edital permitia produzir um filme de 20 minutos, mas uma vaquinha online proporcionou dobrar o tempo de produção. As doações vieram de pessoas dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra, Alemanha Espanha, Suíça e Itália. entre outros países.

O documentário foi lançado em Salvador em julho (confira trailer abaixo) e tem sido apresentado em diversos espaços, sempre seguido de debates. Entre outros lugares, já houve apresentação no Sesc de Piracicaba e no Cine Pagu da Unicamp, em Campinas, Valinhos e Ribeirão Preto, no interior paulista, e em Brasília. O vídeo só será compartilhada internet em 2020.

https://www.facebook.com/GrupoMariasFelipas/videos/411509389565600/

Reconhecida em 2014 como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), a capoeira tem raízes africanas. E se fez no Brasil como resistência à opressão da escravidão sobre o povo e sua cultura. E também como técnica de defesa pessoal que continuou sendo usada, mesmo sendo considerada subversiva até a década de 1930. Com o governo de Getúlio Vargas, ganhou status de esporte nacional, tornando-se, aos poucos, uma espécie de disciplina contra o preconceito racial e a discriminação social.

E alcançou então um novo patamar, sendo reconhecida como instrumento de cidadania e de educação. Está presente em boa parte dos projetos sociais nas periferias, como forma de ajudar a resgatar a juventude da violência. “Não podemos aceitar essa contradição, que a capoeira ainda seja um espaço de desigualdade e de violência contra a mulher. Não podemos aceitar que algo que foi criado para libertar seja utilizado como instrumento de violência, de opressão”, diz Adriana, reproduzindo a fala de Nildes Sena, uma das protagonistas Mulheres da Pá Virada.

 

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