Exclusão por cor

‘Preta Ferreira não morreu. Estão tentando matar um movimento pelo direito à cidade’

Pesquisadora da Brown University sobre a luta de mulheres negras por moradia digna, Keisha-Khan Perry diz que não é por acaso que Preta Ferreira está presa. "País que pensa que moradia é privilégio"

Duke-UNC Consortium/Reprodução
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“Que país que a gente vive que pensa que moradia é privilégio? Que você vai presa porque está defendendo moradia?", destaque internacional em Festival Latinidades, pesquisadora contesta prisão de liderança social

São Paulo – O Jornal Brasil Atual, da Rádio Brasil Atual, recebeu em seus estúdios a antropóloga, ativista e professora da Brown University, Keisha-Khan Perry que, nesta semana, foi um dos destaques internacionais na abertura do Festival Latinidades, que ocorre até este sábado (27), evidenciando o protagonismo da mulher negra em diversas áreas do conhecimento. Aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, Keisha-Khan expôs seu descontentamento frente à prisão da publicitária, ativista na luta por moradia, Janice Ferreira da Silva, a Preta Ferreira, há pouco mais de um mês encarcerada sob acusação de extorsão, sem comprovação judicial. “Não é por acaso que uma mulher que defende direitos básicos esteja sofrendo isso”, diz a antropóloga. “Que país que a gente vive que pensa que moradia é privilégio? Que você vai presa porque está defendendo moradia?”

E é sobre esse mesmo país, sujeito das perguntas retóricas, que a professar debruçou há mais de duas décadas quando, em 1997, deixou os Estados Unidos, país em que cresceu desde que saiu da Jamaica, para realizar uma pesquisa sobre a luta das mulheres negras por moradia no Brasil. Um ano depois, se mudou para Salvador, onde conheceu a comunidade Gamboa de Baixo, no centro da capital baiana, entre outras, e viu de perto o tamanho da força da especulação imobiliária para remover os moradores da região à beira-mar, mas também da força da resistência das mulheres que reivindicam o direito à cidade.

“Sempre falo aos alunos que temos de pensar em uma continuidade. Este momento, nos Estados Unidos e no Brasil, é para a gente refletir as críticas necessárias. Mesmo durante Obama, Dilma e Lula, os processos de inclusão foram incompletos”“Assim, registrou como o racismo e o patriarcalismo são determinantes para a formação e estruturação das grandes cidades brasileiras, como ressalta a pesquisadora em sua entrevista. “Essa violência de querer expulsar, de ameaçar de expulsão, o policiamento cotidiano, a violência da falta de infraestrutura, do descaso social com falta de água limpa, saneamento básico, é todo um processo”, alerta. “Se a gente espera só a violência só naquele momento de confronto policial, a gente não vê a violência em tudo, especialmente quando está relacionada com a mulher negra”.

Acompanhe a entrevista

Próxima da comunidade, Keisha-Khan entrou em contato com mulheres que foram fundamentais para que o próprio conceito de violência da antropóloga fosse ampliado, como Dona Iraci, que mostrou a ela que “a violência não era só marcar os números na porta de qual casa ia se expulsar”. Pouco tempo depois, Dona Iraci morreu em decorrência de uma parada cardíaca enquanto tentava mediar um confronto com a polícia no qual seu neto estava sendo “averiguado”.

“Uma pessoa vai dizer que ela não tomou porrada da polícia, mas ela morreu. Então como a gente entende as polícias especialmente contra as mulheres?”, destaca a pesquisadora, comparando a situação ao que acontece com a ativista Preta Ferreira e tentativa de criminalizar a luta social. “Preta não morreu, mas, de certa maneira, estão tentando matar o movimento que está demandando um direito humano básico”, afirma.

Movimento para repensar a sociedade que se quer

Em sua pesquisa sobre a luta por moradia digna no Brasil, Keisha-Khan não esconde seu compromisso político. Ela própria, com sua mãe à época estudante universitária, foi desalojada duas vezes nos Estados Unidos. “Quando as pessoas me perguntam por que eu foquei nessa pesquisa, eu digo que é porque sou mulher negra, senti na pele essa questão.”

Com experiências na área também em outros países, como a Argentina, a professora faz questão de ressaltar em sala de aula o quanto os movimentos sociais cumprem o papel de repensar que modelo de sociedade se quer, principalmente em tempos marcados por mandatários como Jair Bolsonaro e Donald Trump que, segundo ela,  desvelaram a população racista.

“Eu sempre falo para os meus alunos que temos de pensar em uma continuidade. Acho que esse momento nos Estados Unidos e também aqui no Brasil é um momento para a gente refletir sobre quais críticas são necessárias. Mesmo durante o período de Obama, Dilma e Lula, os processos de inclusão foram incompletos”, pondera a antropóloga. “Avançaram muito, mas também faltava muito, o genocídio (da população negra) acontecia”.

Keisha destaca no entanto que o que acontece no Brasil sob o governo Bolsonaro é um “ataque aos direitos”. “Eles querem manter a sociedade completamente desigual. Que país que a gente vive que tem tantos prédios vazios e a pessoa vai presa porque ela decide ocupar e se organizar dentro de um prédio vazio?”, contesta a pesquisadora frente ao cenário judicial do país.

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