Pedido de esclarecimento

‘Nunca um presidente, nem mesmo da ditadura, ousou atacar uma família de maneira tão vil’

Presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos espera que mídia, Judiciário e outros setores "abracem definitivamente a causa desses familiares como um dever de Estado"

Henrique Almeida/Agecom/UFSC
Henrique Almeida/Agecom/UFSC
Procuradora Eugênia Gonzaga espera que 29 de julho seja "divisor" de águas e que mídia e sistema de Justiça se manifestem

São Paulo – Para a procuradora Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o dia de ontem “foi um claro divisor de águas na história da luta dos familiares” daqueles que desaparecem durante a ditadura civil-militar. “Esperamos que, de algum modo, isto se reflita em uma mudança definitiva no triste cenário brasileiro de descumprimento dos seus direitos”, afirmou, em texto publicado em rede social.

Ela observa que, apesar de se tratar de um dever do Estado, os poucos avanços vieram com muita dificuldade. “Porém, mesmo nesse cenário em que a decisão política sempre foi no sentido de ignorar esse tema por ser muito ‘polêmico’, nunca um presidente da República, nem mesmo da própria ditadura, ousou atacar uma família de maneira tão vil”, acrescentou Eugênia, referindo-se a declarações de Jair Bolsonaro sobre o pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, que desapareceu em 1974, após ser preso pelo DOI-Codi. A Comissão Especial já forneceu um atestado de óbito no qual se informa que ele morreu de forma violenta, “causada pelo Estado”.

“É certo que Jair Bolsonaro sempre fez apologias a torturadores e assassinos de militantes políticos, cometeu injúria real ao cuspir no busto de Rubens Paiva, entre outros ilícitos que teriam justificado até mesmo a perda do seu mandato de deputado ou a sua inabilitação para ser candidato à presidência da República. Mas o que ele fez neste 29 de julho supera as piores expectativas sobre sua insensibilidade e falta de respeito ao direito humanitário ao luto e ao sepultamento digno. Não é possível que as autoridades com poder para agir em relação a tais atitudes sigam se omitindo e minimizando fatos tão graves”, critica a procuradora.

Além disso, o presidente mostrou crueldade ao se deixar filmar contando, enquanto cortava o cabelo, sua “versão” da morte de Fernando Santa Cruz, demonstrando com isso todo o desprezo com que trata o tema”. Uma cena que seria apenas grotesca, observa, se não fosse inaceitável para alguém que ocupa a Presidência da República. “Ele falou sobre essa inusitada versão da morte de um militante político, um pai de família que ousou resistir ao regime ditatorial, para ofender seu filho em razão da atuação pública desse filho, utilizando-se de uma contrainformação que tem por característica apenas confundir, chocar e promover repulsa.”

Para ela, o atual presidente “valeu-se do mesmo método que agentes dos porões, como Curió, Fleury e Ustra, utilizavam para assassinar também a reputação de suas vítimas e desviar o foco de suas responsabilidades”.

“As versões desse tipo já foram mais de uma vez desmentidas por provas e documentos oficiais, os quais um presidente da República deveria não apenas ampliar a publicidade sobre eles, mas ter a hombridade de respeitar”, afirma Eugênia.


Em entrevista ao Jornal Brasil Atual, Eugênia Gonzaga, comenta a declaração de Bolsonaro e o desafio de o país acertar as contas com esse passado sombrio.


“Onde estão?”

E Bolsonaro não pode alegar desconhecimento sobre o assunto, observa a presidenta da Comissão Especial, ao lembrar que em dezembro do ano passado, após o I Encontro Nacional de Familiares, o documento aprovado no evento, a Carta de Brasília, foi encaminhado ao então presidente eleito. Mais de 130 familiares de desaparecidos políticos, entre eles os de Fernando Santa Cruz, voltaram a perguntar: “Onde estão?”.

Ontem, a Comissão Especial voltou a encaminhar a Carta de Brasília. E pediu a esclarecimentos ao presidente, “seja por meio de uma reunião ou de um porta-voz por ele designado”.

“Esperamos que as novas declarações do presidente Bolsonaro, além de ter suscitado reações uníssonas de repúdio jamais vistas, representem um motivo robusto o suficiente para que os órgãos de mídia, o sistema de justiça e todos os detentores de alguma parcela de poder neste país, abracem definitivamente a causa desses familiares como um dever de Estado e um princípio inalienável que não pode continuar a ser ignorado e desrespeitado”, afirma Eugênia.

A procura observa que, em cinco décadas, nenhuma das “raras conquistas” dos familiares por reparação do Estado veio com facilidade. “Conseguiram que fossem adotadas medidas relevantes como a edição da Lei 9.140/95, a publicação do livro-relatório Direito à Memória e à Verdade, a instauração da CNV (Comissão Nacional da Verdade) e a instituição do Grupo de Trabalho Perus. Entretanto, mesmo a partir da Constituição de 1988, nenhum dos governos adotou como política de estado e de governo o cumprimento intransigente de medidas de Justiça de Transição. Exatamente por isso, não apenas os familiares de mortos e desaparecidos políticos seguem sendo vítimas de violações de seus direitos mas todo o país continua enfrentando duros golpes em sua jovem (e indefesa) democracia.”

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