A queda do patriarcado

Doralyce sem meias palavras: a democracia é uma ditadura que perdeu o disfarce

Autora do sucesso "Miss Beleza Universal", a artista pernambucana esteve no "Hora do Rango" rememorando a carreira e pensando um Brasil sem machismo

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"Quando você é branco, as pessoas te julgam pela sua aparência. Quando você é preto, é pela sua capacidade cognitiva e o conhecimento que você conseguiu adquirir”, afirma a cantora e compositora pernambucana

São Paulo — Pílula livre. “Fala um pouquinho mais devagar, por favor”, pede Doralyce ao apresentador do programa Hora do Rango, Colibri Vitta, que havia se referido ao nome do segundo álbum da cantora e compositora. “Pí-lu-la li-vre”, ela mesma soletra, com ênfase na segunda, terceira, quarta e quinta sílaba. Assim é Doralyce, negra, nordestina, feminista. Uma pernambucana que acredita na força da suas letras para levar conhecimento às pessoas e transformar a realidade política e social do país, sem receio de expor ideias e assumir posições. “Acho que todo presidente da República, exceto Lula, que foge desse meu raciocínio, deveria estudar ciências sociais”, disse, durante participação no programa Hora do Rango, na Rádio Brasil Atual.

Nascida em Recife, criada entre Olinda e Palmares, começou a cantar aos 3 anos, na igreja. “Enchia o saco do pastor para cantar. Falava para ele: ‘Pastor, o senhor não vai me chamar para cantar?’.” A igreja era a Assembleia de Deus. Olhando para o passado, diz que aquilo foi até um perigo. “Não basta viver uma ditadura colonial, porque a gente ainda replica vários sistemas, tanto econômicos quanto sociais de colônia, a gente ainda foi catequizado. Saí de uma escola evangélica para uma escola católica, estudei num convento em Olinda”, recorda, enquanto baixa os óculos escuros e arregala os olhos em direção ao apresentador. “Estudei num convento”, reforça, em tom pausado, parecendo incrédula com a própria história, de outrora uma criança que hoje luta para derrubar o patriarcado.

Doralyce foi criada entre o profano e o sagrado. O profano, representado na figura do pai,  chegado à vida boêmia; e o sagrado, representado pela mãe, muito religiosa. Faz questão de demonstrar grande amor por ambos e pela criação que teve, mas não hesita em dizer: “Quero destruir o sagrado. É uma das minhas metas de vida”.

Levanto a bandeira da revolução
Eu canto e a minha voz ecoa na nação
A jornada é dura, eu não desisto não
Eu tô na rua é pra lutar e que haja flores onde eu pisar

Canta que tua voz me encoraja
Canta que o mar na tua frente abre e a gente vai passar
Canta que isso revigora
Invoca Orixá, Buda, Jesus e chega quem você chamar

Trecho da música Canto da Revolução, do álbum homônimo.

Bacharel

Doralyce estudou, ao mesmo tempo, Direito na Faculdade Maurício de Nassau, e Ciências Sociais, na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Se formou no primeiro curso. Em 2014, depois de passar na prova da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), decidiu então viver da arte.

“Eu gostaria de ter trabalhado com música desde quando era muito nova, mas numa sociedade em que mulheres pretas têm poucas oportunidades de fala, para os meus pais era muito importante que eu tivesse um diploma, para que eu tivesse voz nos espaços. Quando você é branco, as pessoas te julgam pela sua aparência. Quando você é preto, é pela sua capacidade cognitiva e o conhecimento que você conseguiu adquirir”, pondera a autora do sucesso Miss beleza universal.

Ela explica que suas músicas são pautadas pela sonoridade, na escola da música popular brasileira, mas destaca que as referências ideológicas são fundamentais ao seu discurso. E então enumera: a escritora Conceição Evaristo, Pai Beto de Oxum, a cantora e compositora Lia de Itamaracá, Elza Soares e Zenaide Zen, estudiosa do afro-centrismo, além de Luiz Melodia, Chico Science, a banda Mundo Livre S/A, a cantora, compositora e namorada Bia Ferreira, Preta Rara, entre outras.

Canto da Revolução, seu primeiro álbum, foi lançado no final de 2017, com oito canções autorais. No ano seguinte, ao participar do movimento Ocupa Minc, na cidade do Rio de Janeiro, e se apresentar num show e cantar a música título do disco, a repercussão foi poderosa como a própria letra da canção. Durante os dias da ocupação, encontrou-se muitas vezes com a então vereadora Marielle Franco (Psol). Eram amigas, com mútua admiração.

“O golpe de 2018 foi maior pra mim do que o golpe de 2016. Durante muitos anos, os meus pais falaram pra mim que o caminho era aquele. Ela era mestre, uma intelectual preta que foi a quinta vereadora mais votada da cidade do Rio de Janeiro. Então aquilo ali era o máximo que eu poderia ser como mulher preta. Tudo aquilo que eu poderia ser, descobri que não poderia ser, porque se eu fosse, poderia levar quatro tiros na cabeça e ser exterminada como ela foi”, disse Doralyce no programa, sem conter a emoção.

“São tantas coisa que não consigo entender. Não consigo entender como o Escritório do Crime é acusado de ser o mandante do assassinato da Marielle e a gente descobre que o Flávio Bolsonaro empregou a filha (na verdade foi a mãe) e a mulher do dono do Escritório do Crime. Ninguém fala mais do Queiroz. Tem uma galera comemorando que o Lula está preso, e não entende que a prisão do Lula é política. Porque quando você pensa que o Zezé Perrella, com meia tonelada de cocaína, não está sendo investigado; quando você pensa que o Aécio fala em ‘apagar’ uma pessoa que estava recebendo propina, e ele não está sendo investigado; você pensa no seletivismo do Judiciário. E não tem como pensar no seletivismo do Judiciário e não pensar que essa democracia é uma ditadura que perdeu o disfarce. Não tem resposta ao vilipêndio que tem sido feito à memória de Marielle.”

Uma sociedade construída pela religião
Ensina ao seu povo o que é pecado ou não
O verde e amarelo aparecem quando é jogo do Brasil
Enquanto na favela, neguim acorda com o fuzil na cara
E a gente come carne todo dia
O índio mora numa palafita
E eu te pergunto: que sentido faz não ter reforma agrária no Brasil?

Trecho da música Democracia, do álbum Canto da Revolução

Estopim

O assassinato da amiga Marielle faz Doralyce lembrar da atual situação de outra parlamentar, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ), que recentemente descobriu haver na dark web planos para assassiná-la. A parlamentar pediu então ajuda ao governador do Rio de Janeiro, Wilson Wtizel (PSC) que, segundo a cantora, respondeu simplesmente não ser esse um problema dele.

“Isso me fere diretamente. Eu não canto as coisa que canto só porque eu gosto. É igual estudar. Eu não estudei Direito e Ciências Sociais porque era o que eu queria fazer. Eu queria estar no palco, mas são processos que foram necessários por causa do lugar social em que nasci, por ter nascido mulher, preta, nordestina”, explica.

Atualmente, quando vai ao Rio de Janeiro, Talíria Petrone precisa andar em carro blindado. Ao mesmo tempo, o deputado federal David Miranda (Psol) não pode sair de casa sem a proteção de seguranças. “Olha o processo que a gente está vivendo no Brasil, agora!”, exclama a cantora.

Se a histórica situação do povo negro e pobre no Brasil é fonte de revolta e inspiração para compor, a vida amorosa ao lado da também cantora e compositora Bia Ferreira, autora do sucesso Cota não é esmola, também é motivo para escrever novas músicas, que estão sendo apresentadas ao público no show Preta Leveza. Nele, as duas compartilham o palco e cantam 12 canções inéditas compostas por ambas, músicas de amor e, claro, de política. No Hora do Rango, a dupla cantou as inéditas Dito pelo não dito, Acenda a luz e Antes de nascer o sol.

Uma música que se tornou sucesso na voz de Doralyce é sua versão para Mulheres, composta por Toninho Gerais e famosa na voz de Martinho da Vila. A nova letra é uma ode à causa feminista e à força da mulher. Apesar da grande aceitação do público, a pernambucana não tem mais cantado a versão em seus shows. O motivo são os direitos autorais exigidos por Toninho Gerais, um direito que Doralyce reconhece como legítimo, apesar de ponderar haver seu trabalho intelectual na nova versão. Acima de tudo, ela gostaria mesmo é que o autor original entendesse os novos ventos que sopram e liberasse a canção, como um gesto de apoio à causa.

“Acredito que começou uma revolução feminista na América Latina. O assassinato de Marielle foi o estopim para as mulheres entenderem que é contra nós”, afirma. Doralice diz acreditar quem ainda haverá uma greve geral só de mulheres no Brasil. “As mulheres vão entender que nós somos a maioria e que o sistema que a gente quer destruir, é o sistema criado por homens brancos. Então de quem que a gente precisa tirar o poder? Deles.”

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