Esperança

Uma noite na escola: a política, a anistia e os tropeços da democracia brasileira

Uma conversa entre o ex-ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi e a ativista Amelinha Teles sobre as consequências da Lei da Anistia, de 1979

Valter Campanato/ABR e Câmara SP
Valter Campanato/ABR e Câmara SP
Vannuchi. em 2009, como ministro dos Direitos Humanos. E Amelinha, com livro sobre papel das mulheres na Constituição de 1988, escrita nove anos depois da Lei da Anistia

São Paulo – Conhecida como Lei da Anistia, a Lei 6.683 completará 40 anos em agosto. Foi, como ainda se diz, a “anistia possível”, ainda sob a ditadura? Em 2010, por 7 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu mantê-la, embora ainda haja recurso pendente e a polêmica persista. Para muitos, não mexer nesse tema explica, em certa medida, o momento político brasileiro. Essas reflexões foram reavivadas em uma aula aberta nesta semana, no Colégio Equipe, que surgiu justamente em 1968, ano em que a ditadura entrou em sua fase mais aguda, com o AI-5. Um grupo de aproximadamente 50 pessoas, quase metade adolescentes, conversou sobre o tema durante três horas. Quase todos ficaram no local até as 23h.

Promovida pelo Instituto Equipe, a aula aberta, no bairro de Higienópolis, região central de São Paulo, reuniu o ex-ministro dos Direitos Humanos (2005-2010) e ex-integrante da Comissão Interamericana de Direitos Humanos Paulo Vannuchi e a escritora e ex-presa política Amelinha Teles, da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.

No final, o músico Jean Garfunkel declamou e cantou. A conversa foi em uma sala da terceira série, onde em uma das paredes figurava quadro com a classificação periódica dos elementos. Surgido como Cursinho pré-vestibular – tornou-se colégio em 1972 –, o Equipe tornou-se conhecido pelo estímulo ao pensamento crítico e contra o autoritarismo. Seus funcionários decidiram aderir à greve geral realizada no último dia 14. Também participaram das manifestações que ficaram conhecidas como tsunami da educação, em 15 e 30 de maio.

Fundadora do Equipe, a professora Laura Tatti, que mediou a conversa, classifica como consequências da Lei da Anistia “o horror que estamos vivendo”. Durante a noite, vai se falar da impunidade a agentes do Estado responsáveis por tortura, morte e desaparecimento de presos políticos e da dificuldade de o Brasil examinar o seu próprio passado. “É uma nação que visivelmente adoeceu”, diz a professora.

Já na fase das perguntas aos convidados, a primeira intervenção foi também de uma docente, que dá aulas de Português no ensino fundamental, e contou ter participado, de alguma maneira, do período pré-anistia, já que ajudava sua mãe a envelopar cartas datilografadas pela abertura política, em um tempo pré-computador e redes sociais. Nos últimos anos, comenta, passou-se a conversar mais nas escolas sobre o que aconteceu durante a ditadura, mas o cenário mudou. “Esse movimento da Escola sem Partido e esse clima interrompeu isso. Acho que a gente precisa conversar mais, em casa também, as famílias precisam falar sobre o que aconteceu. A gente precisa falar sobre política.”

Amelinha conta que conheceu muita gente do Equipe no período em que esteve presa. Para ela, a questão da anistia tem “muitos significados, afetivos, históricos”. Em um evento na Cúria Metropolitana de São Paulo, em 1974, ouviu essa palavra publicamente pela primeira vez. Recorda de dom Paulo Evaristo Arns, de Terezinha Zerbini, de abaixo-assinados, até de um movimento pela legalização do futebol feminino. “Hoje a gente vê a Marta fazendo gol”, emenda a femininista, falando da mais famosa jogadora do país.

Mas, ao mesmo tempo em que se esboçava discutir assuntos como anistia, abertura e democracia, a repressão crescia. Amelinha se refere a esse mesmo 1974 como “o ano dos desaparecidos políticos”. Em 1975, o jornalista Vladimir Herzog, diretor de Jornalismo da TV Cultura, morre sob tortura no DOI-Codi de São Paulo.

Anistiada em 1979, ela lembra da alegria de ver os presos políticos sendo libertados e retornando ao país. Mas observa que tortura é crime de lesa-humanidade, ou seja, não prescreve e não poderia ficar impune. Recorda de outros momentos importantes da história recente: a Constituição de 1988, a revelação da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus, em 1990, a ação contra o Estado brasileiro, condenado em 2010 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar o que se passou  no Araguaia nos anos 1970.

Avanço e retrocesso

“O que me impressiona em tudo isso é a capacidade que a gente tem de desvirtuar a própria história”, diz Amelinha. “A falta de conhecimento é que traz esse retrocesso”, acrescenta. Para ela, o STF terá de julgar novamente a questão da anistia, que não pode ser válida para torturadores. “Anistia, para mim, é um tema dolorido, mas tem de ser tratado. Era um momento muito bonito, que a gente tem de repetir, se precisar.”

Ela rejeita também violência como resposta. “A gente tem de ir pro diálogo. Nós somos da vida, não somos da politica da morte. Eles é que são.”

Vannuchi recorda das origens em São Joaquim de Barra (“terra de Rolando Boldrin”), no interior paulista, até a chegada a São Paulo, no final de 1967, e de sua prisão, em 1971. Lembra do primo Alexandre, estudante universitário morto pela ditadura em 1973, cita a peça Liberdade, Liberdade, escrita por Millôr Fernandes. “O grito que precisamos dar a esses jovens é que é preciso cantar”, diz, citando a Marcha da Quarta-feira de Cinzas, música composta por Carlos Lyra.

O ex-ministro considera que o Estado democrático de direito “está suspenso” no Brasil, país onde, segundo diz, um ministro do STF vota conscientemente contra a lei e a Constituição. Para ele, a questão da juventude é “central” para qualquer estratégia de organização e resistência. Ao falar de ciclos históricos e usando uma imagem atual, procura transmitir otimismo. “Nem no Game of Thrones vem a noite que vai durar para sempre. Somos uma geração vitoriosa, que teve de aprender com os nossos erros.”

Segundo Vannuchi, existiram “duas anistias”. “O regime fez um projeto para se contrapor a esse que mobilizava”, lembra, referindo-se à proposta que acabou sendo aprovada no Congresso em agosto de 1979, primeiro ano do governo João Figueiredo, o último dos generais-presidentes, vindo do Serviço Nacional de Informações (SNI).

Havia uma expectativa positiva em relação ao julgamento, no Supremo, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, protocolada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), questionando a Lei da Anistia. “Tínhamos toda a impressão de que a Arguição seria acolhida”, afirma, destacando o voto do ministro Ricardo Lewandowski, um dos dois favoráveis à ação – o outro foi de Ayres Britto, que se aposentou em 2012 e foi substituído por Luís Roberto Barroso.

Processos históricos

Vannuchi recorda ainda da elaboração do projeto Brasil: Nunca Mais, uma denúncia pública dos crimes da ditadura, lançada ainda em 1985. E de alguns avanços no debate sobre os efeitos da repressão, inclusive psíquicos, como a criação das Clínicas do Testemunho, em que familiares de presos políticos podiam se manifestar. “Essas dores têm de ser faladas, serem processadas.” Hoje, o país vive um “ciclo de irracionalidade”, mas ele reafirma que “os processos históricos são irreversíveis”. O Brasil já esteve em um caminho de busca por um país solidário e justo: “Se trata de reconquistar isso, e nós o faremos”.

Uma jovem de óculos faz duas perguntas: seria possível um novo movimento como foi o das Diretas Já? E se houvesse uma nova ditadura? Outra participante questiona o relatório da Comissão Nacional da Verdade. E um professor destaca a arte e a cultura como “espaço de respiro, de luz”.

“Nunca houve tanto povo na rua”, diz Amelinha, lembrando da campanha pelo restabelecimento de eleições diretas para presidente da República, entre novembro de 1983 e abril de 1984. Ela avalia que a atual geração tem mais consciência: cita os movimentos feminista, LGBT e outros, por direitos civis. “A consciência pela nossa identidade, pelos nossos direitos, é maior.” E também destaca a criação da Comissão Arns de Direitos Humanos, reunindo gente de diferentes visões políticas.

Integrante dessa comissão, Vannuchi reforça que 1964, diferente de agora, teve um componente racional: atendia a uma doutrina de segurança, contrapondo o capitalismo cristão ao comunismo ateu. “Havia um fundamento”, observa, sem que isso justificasse o que veio a partir dali. Ele destaca aspectos positivos da Comissão da Verdade, ainda que as recomendações não tenham sido implementadas até hoje.

“Ela se multiplicou por 100”, afirma, citando os vários colegiados criados por governos, universidades, sindicatos e apontando o ex-deputado Adriano Diogo, na plateia, que coordenou a comissão da Assembleia Legislativa paulista, que levou o nome de Rubens Paiva, deputado sequestrado e morto pela ditadura em 1971. “A verdade floresceu”, diz Vannuchi. Para ele, qualquer movimento tem de levar em conta cinco questões básicas: a luta das mulheres, a questão dos negros, cultura, juventude e direitos humanos, que precisa ter centralidade.

Faltam 20 minutos para as 23h quando Jean Garfunkel começa a citar versos declamados durante a I Caminhada do Silêncio, em 31 de março, que falam da “fragilidade da palavra liberdade” e “da relevância da palavra vigilância”. A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos promoverá nesta segunda-feira (24), no Teatro da Universidade Católica (Tuca), o evento Vozes do Silêncio contra a Violência de Estado. A última canção da noite é Cruzeiro do Sul, de Jean e do irmão Paulo Garfunkel.

Quem me dera
Simplesmente estar
E olhar as estrelas
Sem pensar nas cruzes ou nas bandeiras
Quem dera as luzes da Via-Láctea
Iluminassem as cabeças

E acendesse um sol em cada pessoa
Que aquecesse o sonho e secasse a mágoa
Esta terra é boa
Esse povo agita
Não é à toa
Que a gente voa
Que a gente canta
E acredita