Pensando o Brasil

Acervo de Celso Furtado na USP guardará história recente do país

Trinta mil itens do economista, entre cartas e documentos, foram doados ao Instituto de Estudos Brasileiros da USP

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O economista com Kennedy, exemplar em chinês e parte dos arquivos no Rio: história brasileira

São Paulo – O Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) é conhecido por abrigar acervos de alguns dos principais criadores do país, como Anita Malfatti, Guimarães Rosa, Mário de Andrade e Milton Santos, entre outros. E se prepara para receber os arquivos de um dos principais intelectuais brasileiros, o economista Celso Furtado, que morreu há 15 anos e cujo centenário de nascimento se celebrará em 2020. São aproximadamente 30 mil itens, sendo 10 mil cartas, que ajudam a contar boa parte da história recente do país, ainda mais em tempos obtusos.

O acervo foi doado pela jornalista e tradutora Rosa Freire d´Aguiar, viúva de Celso Furtado, que guarda o material em seu apartamento no Rio de Janeiro. Ainda não há data para transferência dos documentos. Ali estão muitos textos referentes à Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e ao Ministério do Planejamento, que o economista comandou. Lembranças da 2ª Guerra Mundial – ele foi convocado para servir na Força Expedicionária Brasileira (FEB) –, cadernos de estudos durante o período da França, anotações, diários, ensaios, textos inéditos.

Para Rosa Freire, as cartas e os documentos ajudam a traçar um “percurso da segunda metade do século 20, um pequeno panorama da história do Brasil”. A maioria das cartas era de teor administrativo, mas havia o que ela chama de “cartas intelectuais”: entre os interlocutores, gente como Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Antonio Cândido, e mesmo economistas de linhas notadamente diferentes das defendidas por Furtado, como os liberais Eugenio Gudin e Roberto Campos.

Durante o longo período em que morou no exterior, o economista recebia de 450 a 500 cartas por mês. A jornalista tem cópias de 70 a 80 das que ele respondia nesse mesmo intervalo. “Celso era excelente datilógrafo”, conta Rosa, que leu uma a uma. Ela prepara um livro sobre as cartas da época do exílio, que deve sair em 2020.

Da Cepal à Sudene

Paraibano de Pombal, no sertão, Celso Furtado foi ainda jovem para o Rio de Janeiro, sozinho, estudar Direito. Tornou-se soldado e depois rumou para a França, para seu doutorado em Economia. Durante 10 anos, integrou a Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), da Organização das Nações Unidas (ONU) sediado em Santiago, no Chile. Foi ainda diretor do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, ainda sem o S de “Social”) e na sequência tornou-se o primeiro responsável pela Sudene.

Ele também foi o primeiro titular do Ministério do Planejamento, até ser cassado dias depois do golpe de 1964, partindo para a vida acadêmica na França. Toda a elaboração da pasta, ainda de caráter extraordinário, foi feita pelo próprio Celso Furtado, “com todo o know-how que vinha da Cepal”. Em outras circunstâncias, esse desafio se repetiu já no período da redemocratização, quando ele assumiu o Ministério da Cultura no governo Sarney – foi o terceiro em curto intervalo de tempo. “Não tinha nem organograma”, recorda Rosa, acrescentando que ele preparou a primeira legislação de incentivo fiscal.

Ela observa que, mesmo tendo propostas para trabalhar na iniciativa privada, Furtado sempre permaneceu no setor público. “Celso soube trabalhar no Estado, só para o Estado. Ele tinha um orgulho fora de série de ser servidor público. Teve oferta de bancos, não quis. Ele tinha aquela coisa de servir à coisa pública, a res publica, no melhor sentido da palavra.”

Em entrevista recente para o Jornal da USP, ela conta que Celso Furtado nunca imaginou que seria cassado. “Foi uma coisa que calou muito fundo nele a vida inteira. Em condições normais, ele não costumava falar sobre isso, mas em momentos delicados, por exemplo, como depois de uma cirurgia, ainda um tanto abalado por uma anestesia, algumas vezes ele se referia à cassação de direitos.”

Segundo a jornalista e tradutora, os arquivos estão bem conservados. Em parte, graças aos cuidados dos pais do economista. “De cada lugar onde morava, ele trazia alguma coisa e deixava na casa dos pais. De certa forma, ele teve sorte de os pais terem guardado coisas desde os anos 40.” Era um material reunido em um lugar familiarmente conhecido como “caixa do Celso”.

Este é um período de “baixa”, acredita Rosa, destacando a visão “ampla e interdisciplinar” de Celso Furtado. “Ele tinha uma cultura humanística muito grande, um sentido crítico também. Ele tem uma força explicativa, capacidade de análise, isso transcende o economista. É uma cabeça de filósofo. Hoje em dia você tem medo de falar a palavra filosofia.”

A economia era um dos “saberes”, mas o pensamento de Furtado abrangia vários ramos do conhecimento. “Ele sabia juntar tudo, mas com foco muito grande, que era pensar o país. A ideia dele era melhorar, mudar este país”, recorda Rosa. “Quando nos conhecemos, eu brincava e dizia que se eu tivesse de ter ciúme de alguém, seria do Brasil.”

  

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