Livro

Dom Pedro Casaldáliga enfrentou as cercas da consciência

'Desobediência, irreverência como virtude, liberdade de consciência', define Júlio Lancelotti. 'Vivemos uma época de falta de sonhos, de sentido histórico', afirma Genoino

Centro Comunitário Tia Irene

São Félix do Araguaia, 1971: sagrado bispo por dom Tomás Balduíno, dom Pedro dedicou a vida ao povo da região

São Paulo – A imagem de Pedro Casaldáliga no dia de sua ordenação episcopal, à beira do rio Araguaia, em 1971, sintetiza a figura do religioso, acredita a jornalista carioca Ana Helena Tavares, que ontem (9) à noite lançou em São Paulo o livro Um bispo contra todas as cercas – A vida e as causas de Pedro Casaldáliga (Gramma Editora). Na fotografia, despojado, ele dispensa a mitra usada pelos bispos, segura um chapéu de palha na mão esquerda e um remo indígena como báculo (espécie de cajado) na direita, e tem no ombro uma estola simples. Para a autora, o gesto aponta uma “dessacralização” da Igreja.

O espanhol catalão Casaldáliga chegou ao Brasil em 1968, aos 40 anos, para fundar uma missão na região Centro-Oeste, em uma área marcada pela pobreza e por conflitos de terra. Está lá até hoje. Em fevereiro, completou 91 anos, com saúde frágil.

“Luta, afeto, resistência coragem. Ninguém foi tão radical nas suas escolhas como dom Pedro”, diz o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, que participou de debate com a autora do livro e o ex-deputado José Genoino, na sede do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado (Apeoesp), na região central da capital paulista, com a presença de vários integrantes da Irmandade dos Mártires e agentes de pastorais.

Por sua atuação determinada, o religioso sofreu várias ameaças de morte. O episódio mais conhecido, talvez, é de 1976, quando Casaldáliga e o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier foram até uma delegacia interceder por duas mulheres que, segundo souberam, estavam sendo torturadas. Burnier foi morto com um tiro na nuca. “O tiro era para dom Pedro”, afirma Lancelotti. Em 2010, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos reconheceu o padre como vítima da ditadura.

Defesa do Papa

FacebookAna Helena Genoino e Suplicy
Ana Helena, com Genoino e Suplicy: Dom Pedro ainda acorda às 6h, toma café e participa de oração na capelinha do jardim

Visado, Casaldáliga também teve quem o defendesse. Alertado pelo cardeal-arcebispo Paulo Evaristo Arns, o Papa Paulo VI mandou a mensagem: tocar no bispo de São Félix do Araguaia é como tocar no Papa. “No nosso imaginário, nós tínhamos a figura de Pedro. E bem diante dos nossos olhos, a figura de Paulo”, lembra o padre Júlio.

Para ele, o bispo do Araguaia sempre deixou claras suas posições, “do lado do que perde, do lado do que é pisado”, tendo a opção pelos pobres como missão. “Pagou e paga um alto preço por isso”, acrescenta. E destaca ainda em Casaldáliga “a contestação, a desobediência, a irreverência como virtude, a liberdade de consciência”.

Genoino lembrou dos dois anos em que viveu na região do Araguaia, no sul do Pará, entre 1970 e 1972, quando foi preso por sua participação na guerrilha contra a ditadura. Ali, segundo ele, estava “construindo uma experiência que apresentava o futuro, uma grande possibilidade”, em uma região “onde o Estado só existia para matar e reprimir, não havia saúde, o bate-pau, o pistoleiro, era a autoridade máxima, as pessoas morriam à míngua”. 

Ele só conheceu Casaldáliga muito tempo depois. Disse a ele: “A gente não sabia que vocês estavam em São Félix e vocês não sabiam que nós estávamos no sul do Pará”. Mesmo assim, Genoino acredita que havia uma ligação comum. “O que perturbava a cabeça dos opressores é que havia uma esperança. Hoje, a gente vive uma época de falta de sonhos, de utopia, de sentido histórico. Ser revolucionário, hoje, é viver.”

livro.jpgMemória é subversiva

O ex-deputado diz ter aprendido sobre “o mistério da criação” com vários líderes religiosos. Para ele, “pessoas que fazem da sua vida um ato de dedicação são revolucionárias”. Esse também seria o caráter da preservação da história, acredita. “A memória é subversiva. Por isso, os opressores, os dominadores têm medo da memória”, diz Genoino.

“Dom Pedro sempre se referiu a dom Paulo como padrinho”, lembra Paulo Pedrini, da Pastoral Operária. O cardeal-arcebispo de São Paulo, que morreu em 2016, seria “o patriarca da solidariedade da grande pátria latino-americana”. O educador não esconde sua admiração pelos dois, tanto que deu a filho, hoje com 9 anos, o nome de Pedro Paulo. Na tarde deste sábado (11) um tributo será realizado em homenagem aos dois religiosos, na Praça Benedito Calixto, em Pinheiros, zona oeste.

A jovem jornalista, de 34 anos, observa que Casaldáliga – que ela conheceu em 2012 – quis seguir essa profissão. Em seu trabalho de conclusão de curso, procurou demonstrar “como ele utilizou a comunicação para difundir suas causas”. Ainda na Espanha, comandou um programa de rádio comunitária, e já em São Felix lançou o periódico Alvorada, que ainda existe, “uma pérola do jornalismo comunitário”. Metade do que for obtido com a venda de livros será doada à Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Uma das fotos mostra Casaldáliga sentado à mesa diante de uma máquina de escrever. A biógrafa conta que ele “passou muitas horas de sua vida” diante dela, preparando textos jornalísticos e poemas. Na mesma página, o religioso conversa com o poeta e ex-preso político Pedro Tierra e com o cantor e compositor Milton Nascimento, co-autores da Missa dos Quilombos

Na parte final do livro, Ana Helena narra um pouco do cotidiano de Casaldáliga, que conviveu anos com o “irmão Parkinson”, apelido que deu à doença, e em agosto de 2016 fraturou o fêmur após sofrer uma queda, e teve de ser colocado em cadeira de rodas.

“Sua rotina, desde então, tem sido acordar às seis da manhã, tomar café e participar, às 7h30, de um momento de oração na capelinha em seu jardim com seus cuidadores, agentes de pastoral e quem mais for visitá-lo. Nesses momentos, provando que segue atento a tudo, ele canta alguns cânticos e ao final dá a bênção aos presentes”, conta Ana Helena. Segundo ela, o bispo quer sempre estar informado sobre o que acontece, “em especial sobre a situação política no Brasil”. 

Leia mais

Leia também

Últimas notícias