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Incêndio destrói ocupação em São Paulo horas antes da reintegração de posse

Moradores denunciam falta de apoio da prefeitura e ação truculenta das forças policiais na noite de sábado

Cecília Figueiredo / bdf

Morador procura seus pertences na manhã deste domingo em meio aos escombros do incêndio

BdF  “Isso aqui [mostra um cartucho] se chama bala de borracha, bate no corpo e dói”, relata Cláudio dos Santos na manhã deste domingo (24). Ele se refere à ação da Polícia Militar (PM) e da Guarda Civil Metropolitana (GCM) na Comunidade do Cimento, zona leste de São Paulo (SP), incendiada na noite de sábado (23). 

Com outras sete famílias, o idoso se encontrava pela manhã abrigado em uma garagem próxima do local. “Esse incêndio aconteceu devido à juíza [Maria Gabriella Pavlópoulos Spaolonzi, da 13ª Vara da Fazenda Pública]. Foi ela quem assinou embaixo [a reintegração de posse]”, lembra.

O incêndio a que Santos se refere atingiu todos os barracos da Comunidade do Cimento na véspera da reintegração de posse, marcada para 6h deste domingo (24). A comunidade instalada às margens da Avenida Radial Leste, no entorno e abaixo do Viaduto Bresser, até a Avenida Pires do Rio, na Mooca, abrigava cerca de 215 famílias, de acordo com a Prefeitura de São Paulo. 

Vários moradores que não quiseram se identificar relatam que o incêndio começou após um tiro desferido pela GCM. 

Embora Corpo de Bombeiros e agentes da Prefeitura de São Paulo neguem que o incêndio tenha deixado vítimas, os moradores dizem o contrário e acusam a Prefeitura de São Paulo de “apoiar” a remoção forçada. “Perdi botijão de gás, roupas, documentos. Não deixaram pegar nada, jogaram bombas em cima da gente, atiraram bala de borracha, vieram com cassetetes. Foi por volta das sete, oito horas da noite. A gente correndo com crianças e eles [policiais] tacando bomba”, conta a catadora de recicláveis Poliana Alessandra da Silva, mãe de dois filhos.

A ação de rescaldo e de reintegração de posse, na manhã deste domingo, congestionou parte da avenida Alcântara Machado e interditou vias próximas por dezenas de viaturas da PM, da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), GCM e até veículos do Batalhão do Choque. Havia também um veículo do SAMU, agentes da Secretaria de Assistência Social e vários caminhões de limpeza e conservação.

“Imposição, não negociação”

Antes de iniciar a missa na Paróquia de São Miguel Arcanjo, na Mooca, o Padre Júlio Lancelotti esteve com parte dos moradores abrigados em um galpão. Ele desmente que houve negociação por parte da Prefeitura de São Paulo. “Houve uma imposição, não uma negociação. A negociação é ouvir o que eles precisam. O que foi feito foi uma imposição, e nós entramos com agravo no Tribunal de Justiça. A Defensoria Pública também entrou com agravo no Tribunal de Justiça, e nossos agravos foram rejeitados. Nós avisamos a juíza da Fazenda Pública que o tempo era exíguo, de que não era possível fazer nesse tempo”.

Em conversa com o Arcebispo de São Paulo, Lancelotti disse ser necessária uma investigação sobre o incêndio: “Eles [moradores] não iriam colocar fogo nas próprias coisas. Mas, aí vai ter que investigar”.

Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto e ex-candidato a presidente pelo PSOL, cobrou na noite de sábado (23), pela sua conta no Twitter, apuração do incêndio e providências para as famílias desabrigadas.

“Lamentável o incêndio que atingiu essa noite a Favela do Cimento, em São Paulo, que estava com despejo marcado pra amanhã. Centenas de pessoas desabrigadas! É preciso investigar a origem do incêndio e uma ação imediata da Prefeitura para atender as famílias atingidas”, afirmou.

Sem pertences

Centenas de crianças estão sem moradia, roupas e sem material escolar, em razão do incêndio. “Não deu tempo de retirar todas as coisas. Perdi todos os documentos. A gente teve que alugar aqui [garagem] por R$ 1,5 mil, e temos que pagar daqui 15 dias. A reintegração era para ser às 6h da manhã de hoje [domingo]. Iríamos tentar o diálogo, para renegociar o espaço [da comunidade]. Não somos vândalos. Tiraram a gente da pior forma possível. Estavam atirando granadas. Não pudemos tirar nossas coisas. A juíza errou, ela não pensou em nossos filhos”, diz Sílvia Andressa Guedes, que trabalha com reciclagem, mostrando os pertences que conseguiu salvar.

Reintegração de posse

De acordo com a Prefeitura de São Paulo, as famílias que aceitarem acolhimento serão transferidas aos equipamentos da rede de Assistência Social. Os pertences das famílias serão levados a um depósito, onde ficarão guardados por tempo indeterminado. Porém, os agentes da Assistência Social não esclareceram se houve um cadastramento prévio das famílias despejadas.

De acordo com informações divulgadas à imprensa pela Prefeitura, entre os dias 18 a 22 de março foram realizadas audiências de conciliação com os moradores na 13ª Vara da Fazenda Pública da Capital “para a desocupação voluntária e encaminhamentos à rede socioassistencial”.

Nesta manhã, a Secretaria de Assistência Social informou que 72 famílias aceitaram deixar o local e foram abrigadas em centros de acolhimento ou casa de parentes. A Prefeitura conseguiu encaminhar 42 famílias para centros de acolhimento e outras três saíram do município com passagens rodoviárias.

A PM e as demais forças de segurança acusadas pelos moradores negaram à imprensa que tenha havido atos de violência, mas prometeram investigar o caso.

A reportagem entrou em contato com a assessoria de comunicação da GCM e da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e aguarda esclarecimentos sobre o ocorrido.

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