Tortura, morte e censura

Bolsonaro comete crime de responsabilidade ao defender ditadura

Opinião é da procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, que diz que a própria Constituição de 1988 reconhece os fatos do ano de 1964 como um golpe

Evandro Teixeira

No dia 26 de junho de 1968, cerca de 100 mil pessoas foram às ruas no Rio de Janeiro pedir a volta da democracia. Meses depois, a ditadura ficaria ainda pior com o AI-5

São Paulo – A procuradora regional da República Eugênia Gonzaga, presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, não tem dúvida: Jair Bolsonaro comete crime de responsabilidade e improbidade administrativa ao mandar os quartéis celebrarem a data de 31 de março, que marca o início da ditadura civil-militar (1964-1985) e os 55 anos da destituição do então presidente João Goulart.

“A gravidade disso é muito grande, porque não estamos falando de uma coisa em que há dúvida jurídica sobre a legalidade. A própria Constituição de 1988 admitiu que 1964 foi um golpe, e se não quiser usar esse termo pode usar ‘quebra da legalidade’, porque havia um presidente eleito e sem razões para ele ser derrubado. Uma derrubada que não seguiu nenhum processo, as forças contrárias simplesmente assumiram o poder”, afirma Eugênia, em entrevista aos jornalistas Marilu Cabañas e Glauco Faria, da Rádio Brasil Atual.

Em contraposição ao discurso de Bolsonaro, a Comissão Especial e o grupo Tortura Nunca Mais promoveram neste domingo (31) a 1ª Caminhada do Silêncio, em homenagem às vítimas da ditadura e também às vítimas da violência cotidiana causada pelo Estado brasileiro. Segundo Eugênia Gonzaga, a proposta da caminhada surgiu com o grupo Tortura Nunca Mais, da Bahia, e já havia sido bem recebida por parentes de mortos e desaparecidos políticos e militantes em direitos humanos antes mesmo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) recomendar as Forças Armadas a comemorarem a data do golpe de 1964. Após as recentes declarações do presidente, o ato ganhou força.

Na semana passada, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujo, disse à imprensa que as Forças Armadas não se arrependem do golpe de 1964. Para Eugênia Gonzaga, os militares até hoje justificam a destituição de João Goulart em razão de terem supostamente salvado o país do “perigo comunista”.

“A gente sabe muito bem que esse ‘perigo vermelho’ foi superestimado”, pondera a presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Assim como outros países, diz Eugênia, o governo de João Goulart apenas tentava promover reformas sociais, inclusive previstas na Constituição em vigor à época, que era a de 1946.

Com a eleição de Bolsonaro – defensor da tese de que o regime que durante 21 anos matou, perseguiu e desapareceu com seus opositores não foi uma ditadura –, membros das Forças Armadas da ativa e da reserva têm se sentido mais à vontade para negar o golpe e suas consequências. Uma narrativa que, às vezes, procura fazer crer que os problemas do regime começou apenas depois do Ato Institucional nº 5 (o AI-5), em dezembro de 1968, que fechou o Congresso e decretou a censura da imprensa.

Para Eugênia Gonzaga, nem mesmo esse discurso se sustenta. Como exemplo, a procuradora lembra o assassinato do estudante Edson Luís de Lima Souto, em março de 1968, antes da promulgação do AI-5. Com apenas 18 anos, Edson foi morto com um tiro no peito disparado por um policial militar que invadiu o Restaurante Central dos Estudantes, conhecido como Calabouço, no Rio de Janeiro, onde estudantes faziam uma manifestação exigindo melhorias na estrutura do restaurante.

“A morte do Edson prova que não existe essa história de que a ditadura recrudesceu apenas depois do AI-5. Ela já adotava uma postura extremamente violenta em relação a estudantes, a pessoas jovens sem armas, sem grau de periculosidade diante dos agentes do Estado”, afirma a procuradora.

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