Omissão

Para ministro do STF, criminalização da homofobia cabe ao Congresso

Celso de Mello criticou 'inércia' do parlamento em aprovar lei sobre o tema. Falou em 'reacionários morais' e ironizou frase de ministra sobre roupas de meninas e meninos. Julgamento continua

Reprodução Youtube/TV Justiça

Para Celso de Mello, decano do STF e relator de pedido, ‘inércia estatal’ é de responsabilidade do parlamento

São Paulo – No primeiro voto do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o pedido de criminalização da homofobia e da transfobia, o ministro Celso de Mello, decano da Corte e relator, considerou que o assunto cabe não ao Judiciário, mas ao Congresso. As ações chegaram ao STF justamente porque entidades consideram que o parlamento foi omisso no assunto, com o que o ministro concordou. “Todas essas premissas, que venho de expor, autorizam-me a reconhecer a existência na espécie de situação de evidente e inconstitucional inércia estatal inteiramente imputável ao Congresso Nacional”, declarou, na primeira parte de seu voto, que continuará na quarta-feira que vem (20).

Apesar de remeter o tema ao parlamento, Mello disse que o Congresso incorre em “mora legislativa” (demora em regular norma) ao não editar uma norma penal contra a discriminação motivada por orientação sexual ou identidade de gênero. Pela Constituição, cabe ao legislador, acrescentou, a obrigação de editar lei punindo discriminação de direitos e liberdades fundamentais. Assim, o STF poderá determinar um prazo ao parlamento para que aprove uma lei.

O ministro também criticou a tentativa de submeter todos ao que chamou de “padrão existencial heteronormativo” – a normalidade estaria apenas na heterossexualidade. Segundo ele, isso é “incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática”, disse o ministro, em um longo voto, que tomou toda a tarde desta quinta-feira (14). Tanto que a sessão, iniciada ontem, foi novamente suspensa, às 17h55, e será retomada na quarta-feira.

Ele criticou “grupos políticos e sociais, inclusive confessionais” que, “motivados por profundo preconceito, vêm estimulando o desprezo, promovendo o repúdio e semeando ódio contra a comunidade”. E reagiu “a espantalho moral criado por reacionários morais”.

O STF pode declarar a chamada mora legislativa do Congresso Nacional. Isso aconteceu, por exemplo, em 2007, no julgamento de um caso sobre direito ao aviso prévio proporcional, previsto na Constituição de 1988. Na ocasião, o relator do pedido, ministro Sepúlveda Pertence, disse que “a simples existência de projetos de lei referentes à matéria não é causa suficiente para afastar a mora legislativa” e falou em “inércia” do parlamento. Uma lei a respeito (12.506) só foi sancionada em 2011, pela então presidenta Dilma Rousseff. No caso da homofobia, a Câmara aprovou em 2006 um projeto de lei de 2001 (PL 5.003), da ex-deputada Iara Bernardi (PT-SP), mas o texto (PLC 122) parou no Senado e foi arquivado.

Meninas e meninos

Na sessão de hoje, o decano ironizou antiga declaração da ministra Damares sobre vestimentas de meninas e meninos: “Essa visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis sociais – meninos vestem azul e meninas vestem rosa – essa concepção de mundo impõe, notadamente em face dos integrantes da comunidade LGBT, uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais”.

O STF julga dois processos para decidir se há omissão do Legislativo na edição de leis que criminalizem a homofobia. A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, movida pelo PPS, tem Celso de Mello como relator. Já o Mandado de Injunção (MI) 4.733, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), está sendo relatado pelo ministro Edson Fachin. Ontem, as partes apresentaram argumentos favoráveis e contrários ao pedido. O Ministério Público Federal, por exemplo, defende a criminalização, enquanto a Advocacia-Geral da União, em nome do governo, também entende que isso cabe ao Congresso.

Celso de Mello rejeitou a possibilidade de tipificar o crime por via judicial, afirmando que cabe ao  parlamento aprovar leis dessa natureza. Mas fez uma extensa fala citando casos de discriminação e defendendo a “proteção estatal no âmbito das relações socioafetivas”. Segundo ele, há uma “injustificável negação da realidade social”. O próprio STF, lembrou, assinalou que a “autodeterminação do próprio gênero” é um direito humano essencial. Em 2011, a Corte aprovou a união civil homoafetiva. 

O decano citou um caso dos anos 1970, em São Paulo, quando um promotor pediu abertura de inquérito policial contra um cirurgião, Roberto Farina, que havia realizado, a pedido, uma operação de reversão sexual. “Foi instaurado inquérito, houve oferecimento de denúncia e ele foi condenado (por lesões corporais gravíssimas)”, lembrou. O médico recorreu e foi absolvido.

Mello fez referências também à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, afirmando que “o Estado deve assegurar que indivíduos de todas as orientações sexuais e de todas as identidades de gênero possam viver com a mesma dignidade e com todo respeito”. E lembrou de um poema do lorde inglês Alfred Douglas, amante do escritor irlandês Oscar Wilde, com verso que se tornou famoso: “O amor que não ousa dizer seu nome”. No século 19, Wilde foi condenado pelo “crime” de homossexualismo.

Outra citação foi da escritora francesa Simone de Beauvoir, que na obra O Segundo Sexo dizia que “sexo e gênero constituem expressões conceituais dotadas de significado e sentido próprios”.

 

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