Direitos humanos

MPF defende atuação contra Estado ausente e fragilidade democrática

Autoridades e ativistas avaliam Justiça da Transição, defendem esforço para recuperar a memória e punir torturadores. Site lançado hoje conta a história brasileira recente nessa direção

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Perus: trabalho retomado de fato somente em 2014, com a formação de grupo com a Unifesp

São Paulo – Em tempos de exaltação de expoentes da repressão, o Ministério Público Federal (MPF) em São Paulo reuniu autoridades e ativistas para avaliar as duas décadas da chamada Justiça de Transição, um esforço para combater violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado e recuperar a memória de fatos ocorridos durante a ditadura. A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, destacou a importância dessa atuação “neste momento em que vivemos uma fragilidade da democracia” e lembrou da instalação, nesta semana, da Comissão Arns, que pretende monitorar casos graves de violações.

Nesta sexta-feira (22), depois de dois anos de elaboração, foi lançado site que reúne todo o histórico sobre o tema no país, coordenado pelo jornalista Marcelo Oliveira, ex-assessor da Comissão Nacional da Verdade, responsável pela comunicação do MPF em São Paulo. O endereço é www.justicadetransicao.mpf.mp.br. A elaboração da página foi parcialmente inspirada no portal colombiano www.rutasdelconflicto.com. Emocionado, Oliveira citou o ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles: “Arquivo não é papel morto, tem de ser aberto”.

O vice-procurador-geral da República, Luciano Mariz Maia, enalteceu “os que se esforçam para que o tempo não apague nem a dor, nem a memória, nem a verdade”. Uma dor, segundo ele, “que não é presa no passado, mas carregada a todo momento, porque paira como uma permanente ameaça de repetição”. E acrescentou: “Isso não pode novamente acontecer”.

É preciso dar voz às vítimas “para que o futuro não repita o passado”, disse o vice-procurador. “Hoje, a intolerância está em diversos campos sociais. Sejamos presença na vida uns dos outros.”

O procurador regional Marlon Weichert, adjunto dos Direitos do Cidadão, lembrou do primeiro caso, de 1999, referente ao militante Flávio Carvalho Molina, preso, torturado e assassinado em novembro de 1971 no DOI-Codi de São Paulo, um dia antes de completar 24 anos. “Começamos sem nenhuma ideia do que era o marco teórico da Justiça de Transição”, recorda, apontando uma situação comum de ausência do Estado.

Ele citou o exemplo da vala clandestina do Cemitério Dom Bosco, em Perus, zona noroeste de São Paulo, onde foram jogadas mais de mil ossadas, algumas presumivelmente de militantes políticos – dois (Dimas Casemiro e Aluízio Ferreira)  foram identificados recentemente, após um esforço conjunto de vários órgãos. O procurador lembra que em 1990, quando a existência da vala foi revelada, os trabalhos de identificação só foram adiante, em grande parte, por iniciativa da então prefeita paulistana, a atual deputada Luiza Erundina. Depois, o trabalho de identificação parou e “a União fazia que o problema não era com ela”.

Para Weichert, o grande problema do Brasil é justamente a falta de uma política de transição. “O Estado nunca quis”, afirmou, fazendo referência a uma democracia “débil, defeituosa, em risco”.

O procurador também lamenta a sentença do Supremo Tribunal Federal referente à Lei da Anistia, negando-se, em 2010, a revisar os termos da Lei 6.683, de 1979, aprovada ainda durante a ditadura. “O Supremo teve, na minha opinião, uma das piores decisões de sua história. Foi desrespeitosa com os familiares”, criticou.

O posicionamento do STF faz com que não avancem as iniciativas de responsabilização de agentes do Estado por crimes cometidos durante a ditadura. “Nossas denúncias são sistematicamente rejeitadas pelo Judiciário”, diz a procuradora Ana Letícia Absy. “Um agente do Estado que tortura, mata, estupra, retirada a dignidade de uma pessoa, ele não é um herói. Ele cometeu um crime. O Estado tem de ser o primeiro a garantir a nossa integridade física, os nossos direitos.”

Esforço conjunto

O caso Perus, por exemplo, só foi retomado de fato em 2014, com a formação do Grupo de Trabalho Perus, com a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos e a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, além da prefeitura de São Paulo – à época, a secretaria municipal da área estava sob o comando de Rogério Sottili, presente ao ato de hoje, depois substituído por Eduardo Suplicy. Essa parceria resultou no Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), vinculada à universidade. Antes disso, o MPF e outros órgãos públicos fizeram diligências em outro cemitério paulistano, o de Vila Formosa, na zona leste, para tentar localizar restos mortais de desaparecidos políticos.

Em 2016, ali foi inaugurado o jardim Pra não dizer que não falei das flores, homenagem às vítimas da ditadura, fazendo menção a célebre canção de Geraldo Vandré, composta em 1968. Os cemitérios Dom Bosco e Campo Grande ganharam placas para lembrar que ali foram enterrados presos políticos mortos pela repressão.

Então militante do PCdoB, presa e torturada entre o final de 1972 e o início de 1973, quando estava grávida, Criméia Alice Schmidt de Almeida recorda que havia, no início, desconfiança em relação ao Ministério Público. “Eram nossos acusadores na Justiça Militar”, lembra. Mas, no período recente, o MPF “foi a única ajuda governamental que a gente teve, os demais órgãos do governo sempre nos trataram com desdém”. 

Presidenta da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a procuradora Eugênia Gonzaga lamenta que os ataques a ativistas de direitos humanos estejam voltando. Destaca os avanços obtidos em Perus (“1.047 caixas abertas, 900 já com análise antropológica, 500 enviadas ao exterior, duas já identificadas”). Cita o caso do militante e artista plástico Antonio Benetazzo, morto em 1972, para fazer um paralelo com certo tipo de pensamento corrente nos dias de hoje, ao lembrar que ele foi morto com pancadas de paralelepípedo na cabeça, o que pode assustar alguns. “Assusta mais é dizer que não teve tortura no Brasil, que não aconteceu.”