Ignorância e demagogia não vencem narcotráfico nem crise de segurança
Sem programa de bem-estar social, nenhuma política de segurança vingará. 'Só vai enxugar gelo e levar políticos incompetentes ao poder por apoiar violência como solução', diz professor da Universidade Federal do Ceará
Publicado 20/01/2019 - 15h09
Na periferia de cidades do Ceará, moradores são ameaçados por recados como este, pintado em um muro
São Paulo – Enquanto o Estado brasileiro não intervier de maneira qualificada na plenitude do bem-estar social, não saberá lidar com o tráfico de drogas e tampouco enfrentar as facções criminosas que hoje controlam o negócio no país. O alerta é do professor Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em entrevista a Patricia Fachin, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), Paiva defende que, além de aparato policial, é necessário um sistema de proteção social.
“É inaceitável que uma escola termine o ano com menos 100 alunos e não saibamos o que aconteceu na vida dessas pessoas. Crianças e adolescentes não podem ser vistos como problemas de segurança pública. Eles precisam de meios para construir seus projetos de vida, com incentivos a talentos diversos e possibilidades reais de alcançar seus objetivos”, defende. “Esse é o melhor programa de ação social contra a violência, atacando a desigualdade e as injustiças sociais para promoção de uma convivialidade democrática, plena em seu exercício de garantia da cidadania de cada um.”
Feito isso, argumenta o pesquisador, o trabalho policial se constituirá como apoio para a garantia dos direitos dos cidadão e o sistema de justiça terá condições para julgar e responsabilizar as pessoas que realmente produzem prejuízos ao bem-estar social. “Sem nada disso, a política de segurança pública serve apenas para enxugar gelo e levar políticos incompetentes ao poder em virtude de atitudes irresponsáveis de apoio à violência como meio de resolver problemas sociais complexos.”
O professor da UFC pesquisa as transformações sociais em Fortaleza devido ao crescimento da presença das organizações criminosas nas últimas três décadas, sobretudo nos últimos dois anos, devido à consolidação de quatro facções que hoje dão as cartas no estado em que, nas últimas semanas, o ambiente de guerra ganhou o noticiário nacional. “Atualmente chama atenção a capacidade das facções em arregimentar pessoas, sobretudo jovens, para suas frentes”, diz.
Segundo Paiva, faz parte da atuação dos grupos realizar o que chama de “um trabalho pedagógico” para seduzir adolescentes com a ideia de que o crime é caminho para alcançar respeito e sucesso econômico em uma sociedade injusta e corrupta. “Não poucas vezes são crimes de pobres contra pobres, enquanto algumas pessoas efetivamente têm sucessos financeiros que, aparentemente, não são compartilhados com quem ocupa posições subalternas e acaba preso por estar fazendo missões como transportar drogas, fazer assaltos ou praticar crimes de pistolagem.”
Ao comentar o risco de o Brasil se tornar um narco-Estado, conforme apontam alguns estudiosos, Paiva diz não acolher o rótulo e observa que o Brasil já movimenta muito mais dinheiro do tráfico de drogas do que muitos Estados classificados dessa forma. “Existem muitas fantasias e invenções mirabolantes em torno do tráfico de drogas. Sua mercadoria é rentável e, obviamente, o consumo alimenta as disposições para manter o mercado abastecido. Enquanto as pessoas acharem que a drogadição é um problema policial, as pessoas que fazem o tráfico vão inventar meios de manter o movimento em contínuo desenvolvimento”, afirma.
Segundo o professor, o combustível desses grupos são a ignorância e a criminalização de práticas que poderiam ser enfrentadas como problemas sociais no campo da cultura e da saúde pública. “Precisamos discutir a sério o que fazer com o consumo de drogas e olhar para o exemplo de outros países que estão regulamentando e assim melhorando o controle social sobre essas práticas.”
O Ceará, de acordo com o pesquisador, convive há três décadas com situações de violência e conflito entre grupos armados em bairros da capital e interior. “Durante todo esse tempo, eles realizaram assassinatos que eram interpretados pelo poder público como ‘acertos de contas entre bandidos’. A maior parte desses crimes nunca foi efetivamente investigada e os culpados devidamente responsabilizados, deixando a sensação de que esses grupos eram autônomos para fazer isso sem interferência do poder público.”
Os grupos – Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família do Norte (atualmente menos presente em função de conflitos internos que levaram a ser absorvido pelo CV) e Guardiões do Estado (GDE) – passaram a ter um peso muito maior na vida das comunidades, adotando medidas de punições contra quem ousou desafiar suas ordens, na descrição de Luiz Fábio.
“Se na configuração anterior o conflito era restrito ao bairro, agora ele se estende por todo o Estado, com envolvidos enfrentando as ameaças de grupos rivais em qualquer lugar que estejam. ‘Vestir a camisa da facção’ é estar disposto a fazer o que é necessário em nome do coletivo. Isso é algo importante, porque ações como os ataques de 2019 não são fruto de extenso planejamento, mas da cobrança de lideranças em relação ao cumprimento de ordens.”
Leia a íntegra da entrevista de Luiz Fábio Paiva e Patrica Fachin, no IHU