Guerra urbana

Ignorância e demagogia não vencem narcotráfico nem crise de segurança

Sem programa de bem-estar social, nenhuma política de segurança vingará. 'Só vai enxugar gelo e levar políticos incompetentes ao poder por apoiar violência como solução', diz professor da Universidade Federal do Ceará

Omossoroense

Na periferia de cidades do Ceará, moradores são ameaçados por recados como este, pintado em um muro

São Paulo – Enquanto o Estado brasileiro não intervier de maneira qualificada na plenitude do bem-estar social, não saberá lidar com o tráfico de drogas e tampouco enfrentar as facções criminosas que hoje controlam o negócio no país. O alerta é do professor Luiz Fábio Paiva, pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em entrevista a Patricia Fachin, no site do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), Paiva defende que, além de aparato policial, é necessário um sistema de proteção social.

“É inaceitável que uma escola termine o ano com menos 100 alunos e não saibamos o que aconteceu na vida dessas pessoas. Crianças e adolescentes não podem ser vistos como problemas de segurança pública. Eles precisam de meios para construir seus projetos de vida, com incentivos a talentos diversos e possibilidades reais de alcançar seus objetivos”, defende. “Esse é o melhor programa de ação social contra a violência, atacando a desigualdade e as injustiças sociais para promoção de uma convivialidade democrática, plena em seu exercício de garantia da cidadania de cada um.”

Feito isso, argumenta o pesquisador, o trabalho policial se constituirá como apoio para a garantia dos direitos dos cidadão e o sistema de justiça terá condições para julgar e responsabilizar as pessoas que realmente produzem prejuízos ao bem-estar social. “Sem nada disso, a política de segurança pública serve apenas para enxugar gelo e levar políticos incompetentes ao poder em virtude de atitudes irresponsáveis de apoio à violência como meio de resolver problemas sociais complexos.”

O professor da UFC pesquisa as transformações sociais em Fortaleza devido ao crescimento da presença das organizações criminosas nas últimas três décadas, sobretudo nos últimos dois anos, devido à consolidação de quatro facções que hoje dão as cartas no estado em que, nas últimas semanas, o ambiente de guerra ganhou o noticiário nacional. “Atualmente chama atenção a capacidade das facções em arregimentar pessoas, sobretudo jovens, para suas frentes”, diz.

Segundo Paiva, faz parte da atuação dos grupos realizar o que chama de “um trabalho pedagógico” para seduzir adolescentes com a ideia de que o crime é caminho para alcançar respeito e sucesso econômico em uma sociedade injusta e corrupta. “Não poucas vezes são crimes de pobres contra pobres, enquanto algumas pessoas efetivamente têm sucessos financeiros que, aparentemente, não são compartilhados com quem ocupa posições subalternas e acaba preso por estar fazendo missões como transportar drogas, fazer assaltos ou praticar crimes de pistolagem.”

Ao comentar o risco de o Brasil se tornar um narco-Estado, conforme apontam alguns estudiosos, Paiva diz não acolher o rótulo e observa que o Brasil já movimenta muito mais dinheiro do tráfico de drogas do que muitos Estados classificados dessa forma. “Existem muitas fantasias e invenções mirabolantes em torno do tráfico de drogas. Sua mercadoria é rentável e, obviamente, o consumo alimenta as disposições para manter o mercado abastecido. Enquanto as pessoas acharem que a drogadição é um problema policial, as pessoas que fazem o tráfico vão inventar meios de manter o movimento em contínuo desenvolvimento”, afirma.

Segundo o professor, o combustível desses grupos são a ignorância e a criminalização de práticas que poderiam ser enfrentadas como problemas sociais no campo da cultura e da saúde pública. “Precisamos discutir a sério o que fazer com o consumo de drogas e olhar para o exemplo de outros países que estão regulamentando e assim melhorando o controle social sobre essas práticas.”

O Ceará, de acordo com o pesquisador, convive há três décadas com situações de violência e conflito entre grupos armados em bairros da capital e interior. “Durante todo esse tempo, eles realizaram assassinatos que eram interpretados pelo poder público como ‘acertos de contas entre bandidos’. A maior parte desses crimes nunca foi efetivamente investigada e os culpados devidamente responsabilizados, deixando a sensação de que esses grupos eram autônomos para fazer isso sem interferência do poder público.”

Os grupos – Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família do Norte (atualmente menos presente em função de conflitos internos que levaram a ser absorvido pelo CV) e Guardiões do Estado (GDE) – passaram a ter um peso muito maior na vida das comunidades, adotando medidas de punições contra quem ousou desafiar suas ordens, na descrição de Luiz Fábio.

“Se na configuração anterior o conflito era restrito ao bairro, agora ele se estende por todo o Estado, com envolvidos enfrentando as ameaças de grupos rivais em qualquer lugar que estejam. ‘Vestir a camisa da facção’ é estar disposto a fazer o que é necessário em nome do coletivo. Isso é algo importante, porque ações como os ataques de 2019 não são fruto de extenso planejamento, mas da cobrança de lideranças em relação ao cumprimento de ordens.”

Leia a íntegra da entrevista de Luiz Fábio Paiva e Patrica Fachin, no IHU

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