Tirando obstáculos

Governo elimina conselho defensor de alimentação saudável e sem agrotóxico

No ano passado, presidenta descreveu como uma das bandeiras do Consea 'a luta pela comida de verdade, não industrializada, sem veneno'. Medida baixada por Bolsonaro provocou críticas generalizadas

Divulgação

Do Consea surgiram propostas como os planos de apoio à agricultura familiar e à aquisição de alimentos para escolas

São Paulo – Origem de diversas políticas públicas, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) não resistiu ao primeiro dia de governo e foi extinto, o que já provocou protestos generalizados. “Governantes católicos e evangélicos dizem colocar Deus acima de tudo, mas ignoram Sua Palavra”, escreveu em rede social o bispo Mauro Morelli, que estava à frente do Consea original, criado em 1993, durante o governo Itamar Franco, extinto na gestão FHC e reorganizado sob o governo Lula.

O religioso lembra que o Conselho era “dedicado à defesa e promoção do direito humano básico ao alimento e à nutrição”. Segundo a nova configuração do governo, a política nacional de segurança alimentar fica sob responsabilidade do Ministério da Cidadania – sem participação da sociedade. Outro item excluído é o que falava em “mobilizar e apoiar entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de ações públicas de segurança alimentar e nutricional”.

A Medida Provisória (MP) 870, assinada ontem por Jair Bolsonaro e pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, revoga dispositivos da Lei 11.346, de 2006, que criou o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), cujo objetivo anunciado era “assegurar o direito humano à alimentação adequada”. Entre os incisos revogados, está aquele que inclui a Consea como parte integrante do Sisan (confira os itens excluídos ao final do texto). 

Em nota, os representantes da sociedade que integram o Consea afirmam que receberam “com surpresa e grande pesar” a decisão, que segundo eles busca esvaziar as atribuições do órgão. “A institucionalização da participação de representantes de diferentes setores da sociedade civil em um órgão de assessoramento direto da Presidência da República, como o Consea, tem sido importante instrumento de escuta da sociedade civil para o aprimoramento de políticas públicas e fortalecimento do Estado brasileiro”, dizem no documento (leia ao final do texto).

“A inclusão do direito à alimentação na Constituição, a aprovação da Lei Orgânica, da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Plano Safra da Agricultura Familiar, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Programa de Aquisição de Alimentos e as compras institucionais de alimentos da agricultura familiar para escolas e outros órgãos públicos são algumas das propostas que surgiram em debates no Consea e se tornaram políticas públicas para a garantia de uma alimentação saudável para toda a população”, lembram os integrantes do Conselho, afirmando que o formato de participação “tem sido exemplo para inúmeros países”.

Também em rede social, a economista Nathalie Beghin, especialista em políticas sociais, observou que o Consea era uma “instituição internacionalmente reconhecida”. “Que barbaridade!”, emendou Nathalie, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). 

Em nota, a Associação Brasileira de Nutrição (Asbran) repudiou a medida. Para a entidade, “o fim do Consea representa também o fim do grande debate que o Brasil vem fazendo sobre a fome, com ações de enfrentamento que se tornaram referência no mundo”. Além disso, a decisão indica “um retrocesso incomparável nas políticas de segurança alimentar e nutricional, justamente em um momento em que o país precisa aprofundá-las”. 

De caráter consultivo, o Conselho é formado por 60 pessoas, sendo dois terços representantes de entidades da sociedade e um terço do governo. Dali sugiram propostas como o Plano Safra da Agricultura Familiar, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae).

O órgão também apoiava a mobilização contra o chamado PL do Veneno, o Projeto de Lei 6.299, de 2002, que “atualiza” a legislação sobre agrotóxicos. O projeto está pronto para ser levado ao plenário da Câmara.

“A luta pela comida de verdade, não industrializada, sem veneno, é uma das bandeiras do Conselho”, escreveu em maio do ano passado a presidenta do Consea, a professora e pesquisadora Elisabetta Recine. “Defendemos a proibição de todos os agrotóxicos banidos em outros países e que ainda são usados no Brasil. (…) Existem, sim, alternativas de produção de alimentos adequados e saudáveis para toda a população.”

Itens da Lei 11.346 revogados pelo governo:

Art. 11.  Integram o SISAN:

I – a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, instância responsável pela indicação ao CONSEA das diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar, bem como pela avaliação do SISAN;

II – o CONSEA, órgão de assessoramento imediato ao Presidente da República, responsável pelas seguintes atribuições:  (Revogado pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

a) convocar a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com periodicidade não superior a 4 (quatro) anos, bem como definir seus parâmetros de composição, organização e funcionamento, por meio de regulamento próprio;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

b) propor ao Poder Executivo Federal, considerando as deliberações da Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, as diretrizes e prioridades da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, incluindo-se requisitos orçamentários para sua consecução;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

c) articular, acompanhar e monitorar, em regime de colaboração com os demais integrantes do Sistema, a implementação e a convergência de ações inerentes à Política e ao Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

d) definir, em regime de colaboração com a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, os critérios e procedimentos de adesão ao SISAN;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

e) instituir mecanismos permanentes de articulação com órgãos e entidades congêneres de segurança alimentar e nutricional nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, com a finalidade de promover o diálogo e a convergência das ações que integram o SISAN;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

f) mobilizar e apoiar entidades da sociedade civil na discussão e na implementação de ações públicas de segurança alimentar e nutricional;   (Revogada pela Medida Provisória nº 870, de 2019)

 

Nota de representantes da sociedade no Consea

A sociedade civil brasileira que compõe o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional recebeu, com surpresa e grande pesar, a decisão do governo federal recém-empossado em revogar, por meio de Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019, disposições constantes da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan), que visa assegurar o direito humano à alimentação adequada.

A medida busca esvaziar as atribuições do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão de assessoramento direto da Presidência da República e integrante do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan).

Espaço de controle social e construção de propostas sobre o elemento primordial para a vida do ser humano ‒ a alimentação ‒, o Consea tem participação de dois terços de representantes de organizações sociais representativas dos setores mais vulneráveis da sociedade brasileira, que atuam em caráter voluntário, e um terço do governo, conforme determina o artigo 11 da Lei Orgânica nº 11.346, de 15 de setembro de 2006.

A institucionalização da participação de representantes de diferentes setores da sociedade civil em um órgão de assessoramento direto da Presidência da República, como o Consea, tem sido importante instrumento de escuta da sociedade civil para o aprimoramento de políticas públicas e fortalecimento do Estado brasileiro.

A inclusão do direito à alimentação na Constituição, a aprovação da Lei Orgânica, da Política e do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o Plano Safra da Agricultura Familiar, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e o Programa de Aquisição de Alimentos e as compras institucionais de alimentos da agricultura familiar para escolas e outros órgãos públicos são algumas das propostas que surgiram em debates no Consea e se tornaram políticas públicas para a garantia de uma alimentação saudável para toda a população.

O formato de participação social adotado pelo Brasil na área de segurança alimentar e nutricional tem sido exemplo para inúmeros países. Nos últimos anos, o Consea recebeu visitas de delegações nacionais e organismos internacionais para conhecer sua organização e atuação.

Assim, é preciso reforçar e consolidar o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional como um espaço democrático do Estado brasileiro ‒ e não de governos ‒ dando voz às organizações sociais representativas para que as políticas públicas consigam dar resposta aos problemas dos setores mais vulneráveis da sociedade brasileira.

CONSELHEIRAS(OS) REPRESENTANTES DA SOCIEDADE CIVIL NO CONSEA