Imagem suja

Estratégia contra trabalho escravo envolve punição financeira de empresas

Ao mesmo tempo, flexibilização das leis trabalhistas deixa ainda mais vulneráveis os setores já frágeis da sociedade. Assista a vídeo com depoimento de trabalhador resgatado

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Sakamoto: ‘Só conseguimos atuar porque temos transparência de informações. Por enquanto’

São Paulo – Rastrear a cadeia produtiva é uma estratégia para combater e inibir práticas de trabalho escravo e/ou tráfico de pessoas, aponta o jornalista Leonardo Sakamoto, da organização não-governamental Repórter Brasil, criada em 2001. Segundo ele, que nesta segunda-feira (28) participou de evento promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União, em São Paulo, mesmo o setor financeiro já percebeu a vantagem de usar dados relativos ao trabalho escravo em suas tomadas de decisão. 

O jornalista citou casos como os da Cosan, que anos atrás, ao ser incluída na “lista suja” do trabalho escravo, viu bloqueados comerciais e acesso a recursos do BNDES, e da grife Zara, cujas ações comercializadas na Bolsa de Madri sofreram queda após denúncias veiculadas em mais de uma centena de veículos de comunicação, dentro e fora do Brasil. Para ele, discutir se o boicote funciona ou não é uma questão “bizantina”: “O que queremos com isso é que as empresas se atentem para o seu papel”. O objetivo não é “fechar” empresas, acrescenta, mas também fazer com que elas se preocupem com danos à imagem.

Sakamoto lembra que, por força de liminar concedida no Supremo Tribunal Federal a uma associação patronal, a divulgação da “lista suja” ficou suspensa, e divulgações do cadastro de empregadores só eram possíveis por meio da Lei de Acesso à Informação, agora limitada pelo governo Bolsonaro. “No Brasil só conseguimos atuar como atuamos porque temos transparência de informações. Por enquanto.”

Brechas na lei

Atuante há décadas em denúncias de trabalho escravo, o frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra, avaliou que a chamada flexibilização das leis trabalhistas contribui para abrir “brechas”, atingindo a parte mais fraca da relação capital-trabalho. Ele cita exemplos como terceirização, o fim do pagamento das horas in itinere (de deslocamento para o trabalho), os contratos de trabalho intermitente e as recentes restrições criadas para acessar a Justiça do Trabalho. “O avanço na flexibilização só fragiliza os mais vulneráveis.”

Além disso, acrescentou o religioso, já se tentou alterar a definição legal de trabalho escravo, a fim de favorecer o empregador, além da suspensão da “lista suja”, como lembrou Sakamoto. “Esses esforços foram derrotados, mas até quando?”, questionou o frei, lembrando ainda que o atual secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista, já questionou o fato de empresas serem consideradas escravagistas.

Plassat também relacionou avanços, como o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, o pacto nacional firmado por empresas, a formação das comissões nacional (Conatrae) e estadual (Coetraes) de combate ao crime e iniciativas como os programas Escravo nem Pensar, da ONG Repórter Brasil, Raice, da própria CPT, e Ação Integrada, formado a partir de entidades como Sinait (sindicato dos fiscais), Conselho Nacional de Justiça, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Superintendência do Trabalho em Mato Grosso. “Sabemos que o combate ao trabalho escravo significa muito mais que libertar. É quebrar um ciclo vicioso.”

Violência racional

O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano, também apontou efeitos negativos da “reforma” trabalhista, em aspectos como o negociado sobre o legislado (remuneração por produtividade), terceirização de atividades-fim e trabalho intermitente. A entidade entrou com ação direta de inconstitucionalidade (a ADI 6.050) no Supremo Tribunal Federal contra a fixação de limite a indenizações. “Essa é uma limitação terrível no plano das reparações, que precisa ser vencida”, afirmou.

Feliciano definiu a prática do trabalho escravo como uma violência “com racionalidades econômicas”, citando interesses empresariais, cujas cadeias produtivas precisam ser investigadas. E também manifestou preocupação com a transferência para o Ministério da Economia da área de inspeção do trabalho, antes sob responsabilidade do Ministério do Trabalho, extinto pelo atual governo. “Esperamos e acreditamos que a eles (auditores-fiscais) siga sendo permitida a atuação com independência.”

Titular da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete, do MPT), a procuradora Catarina von Zuben enfatizou a importância das ações integradas, envolvendo vários órgãos, formando forças-tarefa para atuar em rede. “Onde há participação da sociedade civil, há efetividade”, acrescentou Catarina, para quem hoje a sociedade consegue “enxergar” o problema sem a visão “romântica” de antes, que associava escravidão ao uso de algemas ou bolas de ferro. A escravidão contemporânea tem outras formas, observou, citando caso de trabalho escravo em obras de bairros residenciais em Jundiaí, interior paulista.

“Tem de haver formação de força-tarefa por setor e cadeia produtiva”, defendeu a procuradora, para quem é preciso atingir não o “primeiro ou o segundo”, mas os reais responsáveis pela exploração de mão de obra análoga à escravidão. Ela se definiu como otimista. “Acho que vamos conseguir erradicar o trabalho escravo. Não sei se na minha geração, mas nós vamos.”

Enquanto isso, situações como a que a própria Catarina citou continuarão acontecendo: em novembro, um grupo de fiscalização móvel (com integrantes do Ministério do Trabalho, MPT, Defensoria Pública da União e Polícia Rodoviária Federal) resgatou 18 trabalhadores submetidos a condições degradantes na Ilha de Marajá no Pará. Eles trabalhavam no extrativismo do açaí. Entre eles, havia dois adolescentes de 15 anos. 

Entre várias situações consideradas degradantes, eles tinham de escalar palmeiras, às vezes com até 20 metros de altura, com calçados improvisados, levando ainda um facão para extrair os cachos. Além das quedas, também estavam sujeitos a picadas de cobra, principalmente jararacas.

O auditor-fiscal André Roston lembrou de vários casos de exploração que testemunhou: “Trabalhador com mais de 70 anos, largado, sem poder trabalhar, dividindo a água com os porcos e fazendo suas necessidades no mato, se endividando com o empregador, cemitérios de trabalhadores (mortos em consequência de acidentes), empregadores que escondiam seus trabalhadores no mato (para escapar da fiscalização), espancamento de esposas de trabalhadores e ameaças de morte aos filhos, servidão por dívida de uma comunidade ribeirinha inteira em uma área extrativista”. A lista é longa. 

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