Direito a moradia

Coordenadora do movimento de sem-teto do Centro é inocentada pela Justiça

Acusações de extorsão caíram por falta de provas. Carmem Silva avisa: não desisti e não vou parar enquanto houver uma pessoa sem casa, sofrendo injustiça, esse é meu papel

JARDIEL CARVALHO/R.U.A FOTO COLETIVO

Carmem, com José Dumont, nas filmagens de ‘Era o Hotel Cambridge’, em que foi protagonista no filme e na vida real

São Paulo – Uma denúncia feita ao Ministério Público de São Paulo, em abril de 2017, transformou a vida de Carmem da Silva Ferreira. A coordenadora do Movimento Sem Teto do Centro (MTSC) foi acusada de extorsão por duas moradoras da ocupação do Hotel Cambridge, no centro de São Paulo.

De acordo com as denúncias, Carmem teria, em agosto de 2016, constrangido e ameaçado duas ocupantes do imóvel para “obter indevida vantagem econômica pessoal (…) sob pena de despejá-las (…) com uso de força”.

Passados quase dois anos, a líder do movimento de moradia, foi inocentada pela Justiça. “Por derradeiro, pesem os argumentos defensivos, não vislumbrando a presença de indícios suficientes, inclusive do dolo específico dos delitos de denunciação caluniosa e de falsa comunicação de crime, indefiro o pedido formulado”, afirmou na sentença o juiz Marcos Vieira de Morais, da 26ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Essa sentença não é para a Carmem Silva, mas para toda liderança de movimento social que procura agir com ética e no contexto da legalidade”, comemora a coordenadora do MTSC, lembrando o sofrimento de quando começaram a surgir as acusações. “Eu me senti completamente indignada e de uma certa forma injustiçada.”

Em entrevista à Rádio Brasil Atual, Carmem conta que o pior para ela nem eram as pessoas que levianamente a denunciaram, mas a fragilidade da própria Justiça. “Um órgão escutar uma única parte e já surgir com uma acusação sem ter provas. Foi um processo muito arbitrário, dolorido. Devasta a vida de uma pessoa, acaba com a reputação em segundos. Me senti envergonhada, humilhada em todos os sentidos.”

A situação, no entanto, fortaleceu sua luta. “Comecei a questionar que há um grande preconceito em relação à participação popular, aos movimentos sociais e suas lideranças. E o que mais me levantou foi essa força interior de fazer o que é certo e de acreditar no que eu sempre fiz, não me deixar abater. Criou-se uma grande rede, entrei em outras empreitadas e levei adiante meu propósito de ter 121 famílias morando em plena avenida Nove de Julho, pagando e mostrando que é possível a cooperação entre o poder público e os movimentos sociais.”

O advogado Lucio França relata que a insuficiência de provas no processo contra Carmem era absurda. “Não foi comprovada a autoria, nem a materialidade, nada.”

Todas as contribuições cobradas de moradores, explica ele, são previstas estatutariamente. “As pessoas que entram no movimento sabem que devem contribuir para limpeza do prédio, manutenção, retirada de entulhos, pagamento de segurança na portaria, extintores de incêndio, eletricista etc. E tudo é aprovado em assembleia.”

São benfeitorias que precisam ser feitas antes da aprovação do projeto de habitação popular pela Caixa Econômica Federal. “Esse processo respaldou que essas contribuições previstas estatutariamente são legais”, ressalta França. 

Carmem avisa: não desistiu e não vai desistir. “Não vou parar enquanto houver uma pessoa sem casa, sofrendo injustiça. Esse é meu papel. A mesma ajuda que eu tive há 28 anos quando cheguei da Bahia com oito filhos, morando na rua. Quando eu não sabia que um cidadão pertencia a um Estado e tive todo apoio no movimento de moradia. Meu enriquecimento é esse: social, do conhecimento, do trabalhar no coletivo, de saber escutar o governo, criticar na hora certa, ou apoiar, saber que sou uma cidadã brasileira e que luto por um país justo.”

Mídia mercadora

As denúncias contra Carmem Silva ganharam força logo após o desabamento, em 1º de maio de 2018, de um edifício de 24 andares, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo.

Diante do sofrimento das famílias, parte da imprensa buscava culpados nas próprias ocupações, com acusações de extorsão inclusive contra lideranças do movimento sem teto. Carmem foi uma delas.

“Houve um julgamento pela mídia na época, criminalizando os movimentos de moradia”, critica o advogado de Carmem. “Quando o prédio desabou, se aproveitaram disso como se ela praticasse extorsão. Mas ficou claro que o movimento não é proprietário e tudo é discutido de forma colegiada. As pessoas tentaram induzir a própria Promotoria ao erro.”

Para a coordenadora do MTSC, a mídia é mercadora. “Está para vender notícia e é muito fácil vender matéria com título que chama atenção”, avalia. “No auge do desabamento do prédio, uma tragédia anunciada, servia ao roteiro capitalista de ganha/ganha dizer que lideranças do movimento extorquiam, roubavam”, lamenta Carmem.

“Mas a luta pela moradia continua, assim como a luta pela qualidade de vida educação, pela saúde, pela mobilidade, pela cultura”, avisa.

Leia também

Últimas notícias