45 anos do golpe contra Allende

Chile ainda sofre as consequências de uma ditadura sangrenta

Na educação, na saúde, na organização dos trabalhadores e até no regime de previdência, país sul-americano segue vivendo sob a Constituição promulgada pelo regime de exceção

Reprodução/Youtube

Após três horas de combate e bombardeio do Palácio de La Moneda, Salvador Allende foi encontrado morto nos escombros

São Paulo — No dia 11 de setembro de 1973, oficiais das Forças Armadas do Chile, com o apoio do comandante do Exército, general Augusto Pinochet, deflagraram o início de um dos mais repressores e sangrentos períodos da história da América Latina no século 20. Durante cerca de três horas, forças golpistas e legalistas, que se mantiveram ao lado do presidente eleito Salvador Allende, se enfrentaram em combates no Palácio de La Moneda, a sede da presidência do Chile, em Santiago.  

Depois de bombardeado por aviões da força aérea e invadido por militares, Allende foi encontrado morto entre os escombros. Uma junta militar então tomou o poder e decretou “estado de guerra”, dando início a um regime de terror que duraria 17 anos, com mais de 3.200 mortos e 38 mil presos e torturados.

Na semana em que se completaram 45 anos do golpe militar no Chile, a historiadora e especialista em América Latina Joana Salém analisou, em entrevista à jornalista Marilu Cabañas, na Rádio Brasil Atual, as consequências presentes ainda hoje na sociedade chilena da violenta ditadura comandada por Pinochet. 

“O Chile hoje é um país que tem um modelo político e social formatado na época da ditadura”, diz a historiadora. Como exemplo, destaca que os trabalhadores chilenos não têm direito a organização política e sindical que tinham na época dos presidentes Eduardo Frei e Salvador Allende, não tendo, por exemplo, direito à greve. Além disso, uma reforma trabalhista feita pela ditadura em 1981 determinou a terceirização ilimitada na economia.  

Segundo Joana, atualmente, de cada 10 empregos criados, sete são terceirizados, muitos com salário menor do que o mínimo. “Uma das consequências da ditadura, em termos sociais, é que a classe trabalhadora perdeu muitos direitos e foi muito desorganizada em termos sindicais.” 

Na área rural a situação não é melhor. Ela explica que a ditadura chilena realizou uma “contra-reforma agrária” que continua em vigor. “Durante a ditadura, 50 mil camponeses perderam o direito à terra, depois de terem recebido esse direito pela reforma agrária. E existe uma constante espoliação das terras mapuche, no sul do Chile, que é um problema grave e gera uma série de conflitos territoriais como consequência direta da ditadura”, analisa. 

A presença da influência da ditadura no cotidiano do país pode ser dimensionada quando se lembra que Pinochet foi chefe das Forças Armadas até 1998, e senador vitalício até 2005. 

Abertura de arquivos 

A violência de Estado promovida pela ditadura tem, na avaliação da historiadora, um “efeito multiplicador” na sociedade chilena. “Se existiram essa vítimas diretas do regime, são mais de 100 mil pessoas que são familiares das vítimas. E ser familiar da vítima é também ser vítima, é um fenômeno social muito amplo”, pondera. 

Ela lembra que houve algumas comissões da verdade no Chile depois do fim do regime. A primeira, realizada em 1990, investigou exclusivamente os mortos e desaparecidos. Entretanto, tal comissão teve, entre seus investigadores, dois membros ligados a Pinochet, o que comprometeu a independência dos trabalhos.  

Em 2003, uma segunda comissão da verdade escutou os presos e torturados, colhendo depoimentos de mais de 35 mil chilenos. “Porém, a comissão também determinou que os depoimentos dessas pessoas devem ficar sigilosos por 50 anos”, explica Joana Salém. Na prática, diz a pesquisadora, trata-se de uma iniciativa ambígua que escutou relatos e denúncias, provavelmente contra militares ainda vivos, mas ao mesmo tempo protege esses indivíduos. “É uma verdade somente pela metade.” 

Chile pós-ditadura 

A historiadora e especialista em América Latina destaca que a atual Constituição do Chile ainda é a de 1980, ou seja, feita durante o regime de exceção. “Pinochet aprovou uma Constituição num clima de medo e terror, a partir de um plebiscito, sem que as pessoas tivessem lido o texto constitucional.”

Como consequências, a Constituição do país não coloca o Estado como garantidor de direitos, mas como ente complementar àquilo que não feito pelo mercado. O resultado mais visível é na educação, área em que o Estado chileno não tem o dever de oferecer serviços a sua população, o mesmo ocorrendo com a saúde. 

“Dentro da Constituição de 1980 existe um neoliberalismo estruturante do regime jurídico e econômico do país”, afirma Joana Salém. De acordo com a historiadora, por conta disso os movimentos sociais chilenos dos últimos 15 anos, principalmente a partir da “revolta dos pinguins”, em 2006, e dos estudantes, em 2011, brigam contra as heranças de Pinochet no sistema institucional do país. 

Previdência 

Joana alerta que a reforma da Previdência que tentou ser aprovada no Brasil pelo governo de Michel Temer segue o mesmo molde da reforma previdenciária do Chile, aprovada em 1980, com a privatização quase completa do sistema.  

“Hoje os chilenos sentem os efeitos dessa reforma, que demora um tempo por causa do ciclo previdenciário. Um dos maiores e mais fortes movimentos sociais que existe no Chile se chama ‘no más AFP’, que são as associação de fundos de pensão privadas”, afirma. Ela explica que quando as pessoas começaram a se aposentar pelo sistema atual perceberam que, na prática, era uma “não aposentadoria”, pois era impossível deixar de trabalhar até o fim da vida para se sustentar.

Ouça a entrevista na íntegra: