Tempero da vida

Lámen e política: uma noite com a chef Bel Coelho na periferia de São Paulo

Dona do restaurante Clandestino deu aula na escola Gastronomia Periférica, projeto que tem a culinária como ferramenta de transformação social

Luciano Velleda

Aberta em fevereiro, escola Gastronomia Periférica tem todos os meses uma aula especial com chefs renomados

São Paulo – O número 358 da rua João Santana, no distrito do Jardim São Luiz, zona sul de São Paulo, é um imóvel aparentemente como qualquer outro da região marcada pelas agruras da periferia na maior cidade do país. Só aparentemente. Em seus três andares – o último com uma bela vista panorâmica – funciona o SoNego Bistrô, inaugurado em maio deste ano, com a proposta de oferecer aos moradores do bairro refeições e lanches de alta qualidade a preços populares. Longe dos olhos dos clientes, é no subsolo da casa que está o coração, o cérebro e o pulmão do bistrô. É ali, descendo uma escada em formato de caracol que funciona a escola Gastronomia Periférica, um projeto ousado e transformador comandado pelo chef Edson Leitte.

Formado em serviço social, ex-subchefe do clube Pinheiros, um dos mais elitistas da capital paulista, com anos de experiência em Portugal, incluindo colocar a Leitaria Gourmet entre um dos melhores restaurantes de Lisboa segundo a revista Time Out, Edson Leitte fundou a escola em fevereiro, selecionando 15 alunos de um total de 250 inscritos. Inteiramente gratuito, com duração de um ano, as aulas práticas e teóricas acontecem no período noturno, de segunda a sexta-feira.

Durante o dia, os alunos se revezam no comando do SoNego, onde colocam em prática os ensinamentos obtidos num menu bem elaborado, além de servir cerca de 100 almoços para crianças da ONG Orpas, cuja sede fica na mesma rua. Às sextas-feiras, a casa oferece um menu degustação, composto por duas entradas, dois pratos principais e duas sobremesas, por R$ 60. Aos sábados é dia de feijoada: por R$ 20, o cliente come o quanto quiser. A maioria dos alimentos é produzida e comprada na própria periferia, de preferência orgânicos.

A vida na Europa proporcionou ao chef, criado no Jardim São Luiz, uma profissão hoje glamourizada em tempos de programas culinários que proliferam na televisão, além da experiência de vida que poucos jovens da periferia poderiam ter. Muito além da oportunidade de aprender as técnicas da arte de criar sabores e texturas, Edson Leitte compreendeu, com o tempo, que a gastronomia pode ser uma ferramenta social capaz de transformar vidas. É com esse pensamento que ele se lançou na missão de fazer a comunidade da periferia entender que é sim possível se alimentar bem, de modo saudável e nutritivo, com os alimentos do dia a dia presentes na cozinha da população mais pobre.

“Nosso maior objetivo é difundir isso em outras ‘quebradas’. Imagina isso em cada quebrada de São Paulo, em cada quebrada do Brasil?”, vislumbra Edson, que sonha ver no futuro parte dos seus alunos ensinando culinária nas periferias país afora. O curso intercala aulas técnicas com outras sobre ética, direitos e deveres, um modelo que visa formar cozinheiros, mas também cidadãos. “A gente entende que se não trabalhar isto, não vamos criar profissionais que saibam mediar conflitos. Na cozinha, não dá pra fazer sozinho, o trabalho é em equipe”, explica o chef, ressaltando que tal formação é uma demanda dos próprios donos de restaurantes.

O grupo de alunos é formado por estudantes de idades variadas, tendo o mais novo 18 anos e a mais velha 52, uma mistura de gerações que o chef avalia como positiva, com reflexos até mesmo na relação familiar dos alunos ao estimular a compreensão e tolerância entre pais e filhos.   

Luciano VelledaBel Coelho_gastronomia periférica
Sob os olhares atentos dos alunos, Bel Coelho ensina como desossar um frango

 

Estrelas longe dos holofotes

Sentado à mesa do bistrô, numa noite fria do inverno paulistano, o fundador da Gastronomia Periférica mantém os olhos atentos ao telefone celular, vez ou outra enviando e recebendo mensagens. A razão é que logo mais os alunos terão uma oportunidade rara: uma aula exclusiva com a renomada chef Bel Coelho.

Duas vezes por mês, Edson traz cozinheiros estrelados para proporcionar aos seus estudantes uma experiência de valor incalculável. Pela cozinha do SoNego Bistrô já passaram Raul Godoy, cozinheiro do Bio, restaurante do famoso chef Alex Atala; o argentino Alejandro Peyrou, do Açougue Central; e Marcelo Bastos, chef e proprietário do Jiquitaia. Nos próximos meses virão Helena Rizzo, do premiado Maní, e Rodrigo Oliveira, do Balaio IMS.

Vestindo calça vermelha, camiseta de manga curta cor cinza e calçando tênis branco, Bel Coelho entra no bistrô e dá um caloroso abraço no criador do espaço. Os dois se conheceram durante o banquetaço promovido por diversos cozinheiros contra a proposta da ração humana do ex-prefeito e agora candidato a governador de São Paulo, João Doria (PSDB). A afinidade culinária, política e social foi imediata. Alçada por setores da mídia à condição de “musa” da gastronomia brasileira, ali na quebrada Bel Coelho está à vontade, sem maquiagem, colocando seus conhecimentos a serviço do “micro universo” onde pode influenciar o mundo ao seu redor. A chef tem sido uma ativa militante em prol da alimentação saudável e contra o uso de agrotóxicos no Brasil, um engajamento que lhe rende aplausos por um lado e prejuízos por outro.

No subsolo do SoNego, a dona do restaurante Clandestino põe um avental cinza, lenço na cabeça, ajeita cuidadosamente três facas sobre a mesa branca, e dá início a aula. O prato da noite é um lámen, típico macarrão japonês, com um caldo “bem saboroso”, incluindo cogumelo, frango e ovo mollet, o “ovo perfeito”. Ao seu redor, com os cabelos cobertos por touca, os alunos assumem postura respeitosa, em silêncio contemplativo. Aos poucos, Bel Coelho vai solicitando alguns produtos, enquanto pondera que o famigerado miojo é uma espécie de “lamén industrial”, cujo “pozinho” tem substâncias nocivas à saúde.

“Muito importante que o caldo seja saboroso, é o caldo que vai dar sabor. Se o caldo estiver uma merda, a comida vai ficar uma merda. O caldo tem que estar ‘bombando’”, explica a chef. Em seguida, pede para um aluno picar a cenoura e, por ser orgânica, orienta que não precisa tirar a casca, caso contrário deveria ser retirada porque tem “muito agrotóxico”. Estimula que outra aluna corte o frango, mas logo estranha a técnica que ela, estagiária no restaurante Bio, ensaia utilizar. As duas conversam e, ao final, fica decidido cortar do mesmo modo que o chef Edson Leitte ensinou no curso. Instantes depois, ao perceber certa dificuldade da aluna, pergunta com delicadeza: “Posso te mostrar?”.

Depois de um tempo, a cozinha está quente, agitada, e a postura contemplativa dos alunos não existe mais, com cada um executando sua tarefa. Postado ao fundo, Edson Leitte só observa, vez ou outra comentando algum detalhe. Já Bel Coelho está atenta a tudo, às panelas que estão no fogo, ao que os alunos fazem, ao melhor estilo “tudo ao mesmo tempo agora”. Enquanto coordena a produção do jantar, ainda explica os perigos do glutamato monossódico, ingrediente comum em alimentos industrializados. “Nosso objetivo é buscar esse sabor de modo natural, com a casca do tomate, alho, cogumelos…”, ensina a chef do Clandestino. “Gente, se quiserem perguntar alguma coisa, fiquem à vontade”, avisa.

Luciano VelledaGastronomia Periférica
Para os alunos, a aula exclusiva com a chef foi uma experiência valiosa. Abaixo, de boné: o chef Edson Leitte

   

Comida e política

Com o lámen pronto, todos sobem ao primeiro andar do bistrô para experimentar o prato. Sentados lado a lado, com os chefs Edson Leitte e Bel Coelho na ponta próxima à entrada do local, por instantes reina o típico silêncio de quando se come algo bom. O criador da escola Gastronomia Periférica traz uma cerveja Pokazideia, produzida na periferia e exclusividade da casa. São cerca de 22h30 e a noite escura no Jardim São Luiz recebe as primeiras gotas de chuva depois de meses de secura na cidade.

Edson pede a palavra e começa a agradecer Bel Coelho pela aula. A voz embarga. O cozinheiro criado na periferia, que rodou mundo e voltou ao local da infância para usar a gastronomia como ferramenta de ascensão social, tem a exata noção de que ali acabou de acontecer algo mágico. “A Bel não vai dar aula na Anhembi Morumbi e nem na FMU, mas veio aqui na quebrada dar aula pra vocês”, destaca, se dirigindo aos alunos. 

A chef do Clandestino agradece. Pondera que a história do Brasil não permite que todos tenham oportunidades iguais para se desenvolverem. “Tenho feito o possível no meu micro universo, é um caminho sem volta.” De repente, envereda para um discurso político e pede para todos os alunos votarem bem nas próximas eleições, de preferência em candidatas mulheres progressistas e que representem a periferia. “Não votem nos mesmos… Nem no Alckmin e nem no Bolsonaro”, diz, alertando que o candidato do PSL “não gosta de pobre, de gay, de mulher e nem de floresta em pé, é praticamente um homem do século 17”.

Conta um pouco sobre sua origem, filha de diplomata, e a oportunidade que teve de estudar gastronomia no exterior e iniciar uma carreira de sucesso. Faz questão de reconhecer e não negar sua posição privilegiada em meio a uma sociedade tão desigual. Entretanto, procura agir de modo a se distanciar desse berço esplêndido de nascença.

“Não posso nem imaginar a dificuldade de vocês, nunca vivi isso, mas posso pensar na coletividade. O Doria, por exemplo, não tem nada de novo, já cozinhei pra ele, conheço. São Paulo está totalmente abandonada. Desde que o golpe aconteceu, tudo piorou. Tomem cuidado, e isso tem a ver com comida mesmo, com o que a gente faz”, afirma, ouvida com atenção pelos alunos. “A gente tem que votar melhor, e no Legislativo, lá no Congresso. É muito importante olhar a bandeira, o que o candidato defende. PMDB, PP, PR, PSDB, esses partidos a gente já pode fugir.”

Define as periferias como “desertos alimentares”, com quitandas repletas de comida industrializada. E introduz o tema do racismo, confessando que colocou os filhos na escola pública depois de não aguentar mais ver só crianças brancas na escola particular. “Isso não é normal e comecei a me incomodar. A gente não pode mais normalizar. Aí alguém fala que você ‘tá sendo chato pra caralho’. Paciência, a gente vai ser chato por um tempo, não dá mais pra normalizar.”

Passam das 23h e os alunos precisam ir embora. Bel Coelho também diz que precisa seguir seu caminho, pois “tem muita coisa pra fazer”. Lá fora, a chuva desaba sobre a periferia paulistana. O SoNego Bistrô se prepara para fechar a porta, mas isto apenas até a manhã seguinte, quando os alunos da escola chegarão novamente e começarão tudo de novo, a servir almoço para 100 crianças e atrair os moradores do bairro para essa silenciosa transformação social e econômica, com pitadas de sal e pimenta.

Assista um pouco da aula de Bel Coelho:

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