Controle demográfico?

Esterilização involuntária no interior paulista levanta suspeita de preconceito

Caso envolve mulher, mãe de oito filhos, submetida a laqueadura por determinação judicial. Circunstâncias do procedimento serão investigadas

Arquivo EBC

Ministério Público pediu, e juiz autorizou, procedimento de esterilização em circunstâncias não claras

São Paulo – Um caso inédito e motivo de espanto no meio jurídico, define a  coordenadora-adjunta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), Clara Masiero, sobre a laqueadura realizada em Janaina Aparecida Quirino, por ordem judicial, na cidade de Mococa, interior de São Paulo. A ação pedida pelo Ministério Público – e aceita pelo juiz Djalma Moreira Gomes Júnior – justificou a medida extrema da esterilização como necessária para garantir a própria vida da mulher. Argumento descabido, segundo Clara.

“Esterilização não é uma medida para proteger a vida da pessoa. Até porque gravidez não é doença”, explica a coordenadora. “Do ponto de vista jurídico, é um pedido sem fundamento, inconcebível no Estado democrático de Direito.”  

Mãe de oito filhos (três do primeiro casamento, que estão sob a guarda do pai; e cinco do atual relacionamento), Janaina estava grávida do último filho quando realizou o procedimento cirúrgico. Em nota enviada ao Jornal GGN, o juiz Djalma Moreira explica que a situação familiar dela vem sendo acompanhada há anos pela Comarca de Mococa.

De acordo com o magistrado, Janaina concordou com a laqueadura proposta pelo Ministério Público e declarou em cartório da Vara de Mococa que “é mãe de sete filhos e está de acordo em realizar o procedimento de laqueadura para evitar nova gestação indesejada, estando ciente de que há um processo nestes termos tramitando na Comarca de Mococa/SP”.

Na nota, o magistrado traça o histórico dos problemas com drogas de Janaina e de seu atual companheiro, com reflexos nos cuidados com os filhos e no planejamento familiar. “O ambiente familiar sempre foi permeado pela dependência química dos pais, não adesão ao tratamento indicado, agressões físicas entre o casal, violência física contra os filhos por parte do atual companheiro, dificuldades financeiras. Além disso, o casal passou a traficar drogas”, afirma.  

Atualmente, ela e o companheiro estão presos por tráfico de drogas.Como consequência do “acolhimento prolongado dos quatro filhos menores” e da falta de “mudanças significativas” do contexto familiar, o casal perdeu a guarda dos filhos. Foi quando então o Ministério Público solicitou a laqueadura de Janaina.  

Para Clara Masiero, além da falta de justificativa jurídica, o caso traz à tona também questionamentos de ordem ética e moral. “O que motivou tal pedido?”, questiona a coordenadora do IBCCrim. E ela mesma especula a resposta: “Parece esterilização eugênica, a ideia de impedir proles ‘indesejadas’.” 

Embora seja contra internação compulsória por uso abusivo de drogas, Clara diz que a medida é legal em determinadas circunstâncias, e poderia ter sido uma alternativa ao problema da dependência química da mãe. Algo mais plausível do que usar o problema com as drogas como medida para justificar a laqueadura.

“A esterilização compulsória é descabida. Esterilização não tem relação com drogas. É uma medida inédita. Sabemos que há preconceito de classe, e o Judiciário reproduz esse preconceito”, reflete Masiero. Para ela, a leitura do processo indica que o Judiciário desconsiderou a opinião de Janaina sobre sua vida pessoal e familiar. 

Investigação 

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Mococa afirma que Janaina consentiu com o procedimento cirúrgico, após visita realizada na penitenciária feminina de Mogi Guaçu, onde ela se encontra presa.

Em artigo publicado no Conjur nesta quarta-feira (13), o professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP  Pierpaolo Cruz Bottini falou sobre a questão do consentimento. “O magistrado alegou que o procedimento contou com a concordância da esterilizada. Realmente, há uma certidão de cartório em que ela manifesta adesão ao procedimento. Porém, o próprio Ministério Público relata que, às vezes, Janaina ‘demonstra desinteresse (na esterilização) ao não aderir aos tratamentos’, e o Tribunal de Justiça reconheceu que existiam indicações de que a mulher ‘mostrou-se reticente e em alguns momentos resistente à sua realização'”.

“Assim, havia ao menos dúvida razoável sobre a real concordância de Janaina com o procedimento de esterilização. Um juiz prudente marcaria uma audiência, ouviria a mulher, procedimento compatível com a gravidade do ato. Mas não, decidiu em caráter liminar pela laqueadura, como se esterilizar alguém em situação de rua fosse urgente, que pudesse ser feito sem um cuidadoso processo legal. E ordenou a “realização do procedimento de laqueadura compulsória no momento do parto”. Convenha-se, o uso do termo compulsória não parece condizente com um ato inegável de concordância daquela submetida à operação”, pontua Bottini.

Para a coordenadora-adjunta do IBCCrim, o caso de Mococa também chama a atenção pela ausência de auxílio jurídico recebido por Janaina ao longo do processo, seja por meio de advogado ou defensor público. 

Na última segunda-feira (11), a Defensoria Pública de São Paulo informou que já está apurando o ocorrido no processo judicial e irá analisar, inclusive, a situação penal de Janaina. O órgão reafirma a ilegalidade da esterilização involuntária na legislação brasileira. 

“De qualquer modo, é importante ressaltar que qualquer pedido de esterilização involuntária, tal como feito na propositura da ação, contraria frontalmente o artigo 2º, parágrafo único, e o artigo 12º da Lei 9.263/1996, que proíbem a realização dos procedimentos previstos na Lei de Planejamento Familiar com a finalidade de exercer controle demográfico, bem como é vedada a indução individual ou coletiva à prática da esterilização cirúrgica”, explica a defensora pública Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria paulista.

“A Recomendação Geral nº 24 do Comitê sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, ao interpretar o artigo 12 da Convenção que a criou, ratificada pelo Brasil, veda expressamente a esterilização sem consentimento. Logo, verifica-se não ser cabível a esterilização forçada, por se tratar de pedido juridicamente impossível, que contraria os direitos consagrados no Brasil e em normativas internacionais”, encerra a nota da Defensoria Pública.