Despejo

Em uma manhã fria de São Paulo, mais 43 famílias nas ruas

Ocupação Marisa Leticia, na zona oeste da capital paulista, sofre reintegração de posse. Um retrato do drama da moradia no Brasil

Rafa Yamamoto

Ocupação Marisa Letícia durante a desocupação

São Paulo – Às 5h45 da última quinta (24), um grupo de policiais chegou à porta da Ocupação Marisa Letícia, localizada na rua Vitorino Camilo, bairro da Barra Funda, zona oeste paulistana. A ordem era para desocupar o imóvel onde 43 famílias viviam há quase dois anos. Na fria manhã tiraram os brinquedos das crianças, exemplares da bíblia e outros livros. Tiraram os móveis. Tiraram as roupas de procurar trabalho. Amontoaram tudo como se fossem apenas itens comuns.

A noite anterior havia sido de vigília e apreensão. “Eu estava na rua desde as 7h do dia 23 tentando encontrar algum lugar para as famílias. Fui dormir só 2h do dia 25. Estou muito cansada e indignada”, desabafou Antônia Serafim Rodrigues, a Toninha, coordenadora do Movimento de Moradia Famílias Independentes (MMFI), que organizava a ocupação. Segundo ela, não houve nenhuma ação da prefeitura para direcionar as famílias ou mesmo prover qualquer tipo de assistência. Os moradores foram postos no meio da rua, cerca de 40 crianças. Muitos imigrantes.

Marcelo SantosToninha
"O que vale, para eles (do Poder Público), é só o patrimônio e não as pessoas”, disse Toninha

A reintegração foi anunciada no dia 16, numa reunião convocada cinco dias antes, quando policias foram até o prédio com o aviso judicial e a companhia de energia elétrica cortou o fornecimento de energia, deixando todos no escuro. Na mesma noite, um grupo ligado à Frente de Evangélicos Pelo Estado de Direito realizou um encontro no mezanino do prédio, onde funcionava o centro cultural. Iluminados apenas pelas luzes dos celulares, tentaram passar uma mensagem de motivação e esperança. Entre os oradores da noite, o metodista Anivaldo Padilha, um dos coordenadores nacionais do grupo e veterano ativista pelos direitos humanos, vitimado por torturas e exilado durante a ditadura civil-militar, além de pai do ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha.

A visita policial, o corte de fornecimento de energia elétrica, o aviso de despejo e, por fim, a reintegração, vieram na esteira da perseguição aos movimentos de moradia, que recrudesceu com o incêndio e desabamento do prédio Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu. “A vida não tem nenhum valor para o nosso Judiciário, para o governo estadual paulista, hoje com Márcio França, para o prefeito Bruno Covas e para o secretário municipal de Habitação, Fernando Chucre. O que vale, para eles, é só o patrimônio e não as pessoas”, disse Toninha, contando que após procurar o Ministério Público, ouviu que nada podia ser feito. “Um promotor me disse que não concordava com invasores e por isso não faria nada em nosso favor.”

Desamparo

A falta total de assistência por parte do Poder Público dispersou os moradores, que se viram obrigados a procurar qualquer forma de abrigo para suas famílias, como casas de amigos ou até mesmo automóveis de conhecidos. “Não há mais lugar. Não há onde colocar essas famílias”, lamentou Toninha, explicando que as crianças estavam em época de provas em suas escolas e que muitas também ficavam nas creches, no entorno do endereço da ocupação.

Era o caso da filha da haitiana Kettia Badeaou, 25, a pequena Isabela, de 2 anos. Desempregada e sem ter onde ficar, ela não podia perder a vaga na escola infantil. “Acho que vou permanecer no centro, na rua mesmo. Não posso deixar a Isabela sem escola senão não consigo nenhum trabalho.”

Rafa Yamamotoelias
Após o despejo, o eletricista Elias não sabe que rumo tomar

Já Elias, 77, parecia cansado. Eletricista, ele vivia do trabalho com alguns pequenos bicos e cuidava das instalações do prédio. Com o despejo, não sabia que rumo tomar. Osias, aos 47 anos, encarava a segunda grande perda em dois meses de vida. Antes de lhe escapar o teto, ele viu, há quarenta dias, sua mulher morrer vítima de pneumonia. Restou-lhe agora, apenas, a cadela Estrela e um valor mensal do programa Bolsa Família para sobreviver.

A moradora e pastora evangélica Cléo, de 53 anos, era uma das poucas esperançosas com os dias que viriam. Ela estava na ocupação há cinco meses, tempo em que se recuperou de uma depressão, após perder tudo o que tinha devido a um relacionamento desastroso. “Com a ajuda dos moradores do terceiro andar, onde eu morava, reencontrei meu filho e recuperei o laço que havia perdido. Vou para casa dele.”  A maioria dos seus ex-vizinhos, porém, ficou sem ter para onde ir.

Rafa YamamotoCleo
Cléo, uma das poucas que tinha esperanças após a desocupação

 

No Brasil são seis milhões e trezentos mil famílias sem uma casa. Por outro lado, sete milhões e 900 mil imóveis vazios. Boa parte são imóveis públicos, que com pouco investimento poderiam ser destinados às moradias populares. Outra parte está em situação irregular, abandonados e com dívidas que chegam a ultrapassar o valor do imóvel. A Constituição, em seu artigo 6º, determina que o direito à moradia deve ser garantido a todos.