Tragédia em São Paulo

Edifício que desabou foi projetado em 1961 e abrigou arquivos do Deops

Conselho de Arquitetura e Urbanismo cobra, antes que novas tragédias aconteçam, 'ação política urbana articulada, séria e eficaz', por uma questão de justiça social

Paulo Cesar Rocha

O edifício que desabou na madrugada do dia 1º após incêndio: mais um episódio trágico na cidade

São Paulo – Agora um monte de ruínas e cinzas, além de toda a dor causada pela tragédia, o edifício Wilton Paes de Almeida, no centro de São Paulo, já foi sede da Polícia Federal durante duas décadas, entre os anos 1980 e 2000, e abrigou arquivos da repressão. Segundo o jornalista Vasconcelo Quadros, no sexto andar, de um total de 24, ficava “uma das mais preciosas relíquias: arquivos do antigo Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops), órgão de repressão atuante desde os anos 20, especialmente no período da ditadura de 1964-1985”.

“Seu guardião era nada menos que o delegado Aparecido Laertes Calandra, o temido agente dos porões conhecido como ‘Capitão Ubirajara’, apontado por ex-presos políticos como um dos comandantes da tortura. Delegado civil, levado pelo então chefe da PF, Romeu Tuma, Calandra instalara-se no 18º andar do prédio e, de lá, descia para ‘consultar’ o arquivo. Só ele podia entrar, o que gerou a suspeita entre os federais de que fazia um ‘pente-fino’ para limpar o arquivo”, conta Vasco, como é conhecido, em texto publicado na sua página do Facebook. Ele lembra que o acervo está atualmente no Arquivo Público do Estado.

O jornalista diz ainda que ali também atuaram “ex-agentes políticos estaduais que saíram do Deops junto com (Romeu) Tuma, em 1979, sob as bênçãos da ditadura e do então governador paulista, Paulo Maluf”. Esses agentes “foram incorporados, sem concurso, aos quadros da Polícia Federal como recompensa pelos serviços prestados ao regime militar”.

De acordo com Vasco, o prédio sempre inspirou riscos: “Um defeito em sua estrutura arquitetônica, mesmo espremido entre os demais espigões do quadrilátero, deixava uma inclinação tão notável que os policiais o chamavam de Torre de Pisa”. Além disso, os elevadores – “de cujo fosso provavelmente se originou o incêndio”, acredita – frequentemente assustavam os usuários, caindo dois ou três andares.

Durante quase 20 anos, o prédio foi destino cotidiano de vários repórteres policiais, como o próprio Vasconcelo. “Era uma ‘garimpagem’ diária entre suspeitos e policiais, numa época em que os ‘grampos’ eram acobertados por segredos de estado, delações não existiam no formato de hoje e internet era uma mera ficção. Andávamos com um ‘bipe’ preso à cintura, nos comunicávamos com a redação por ‘orelhão’ e, quando a coisa apertava e a pauta se estendia, mandávamos a matéria datilografadas em lauda toda rabiscada, pelo ‘boy’ que a chefia enviava”, recorda o jornalista, lamentando que essas e outras lembranças “venham na esteira da tragédia, parte de uma crônica tão triste e previsível quanto a omissão de gestores que agora posam de indignados!”.

Em nota, divulgada ainda ontem (1º), o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (CAU-SP) se solidarizou com as vítimas, lamentando que a tragédia exponha mais uma vez o descaso do poder público, “em todas as esferas, com o atual quadro urbanístico das nossas cidades e com ausência recorrente de uma Política Habitacional Nacional consistente aliada a preservação do Patrimônio Histórico de São Paulo”.

A entidade lembra que o edifício, projetado pelo arquiteto Roger Zmekhol, em 1961, foi tomada em 1992 pelo Conselho  Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo. “Era um dos melhores exemplos da arquitetura moderna na cidade”, afirma o CAU. Nascido na França, Zmekhol formou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).

“Há muitas outras construções em situação idêntica na área. Antes que novas tragédias aconteçam, é hora de uma ação política urbana articulada, séria e eficaz a respeito. Não apenas pelos edifícios icônicos, mas sobretudo por justiça social”, diz o Conselho.

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