Crise hídrica

Em meio à grande seca no Ceará, comunidades lutam em defesa da água

Povos indígenas e tradicionais reforçam mobilização contra projetos que retiram água de seus territórios para abastecer empreendimentos industriais

Movimento de moradores em defesa da água

Moradores lutam pela manutenção da soberania hídrica e contra empreendimentos que “bebem muita água”

São Paulo – A seca que assola o Nordeste desde 2012, já considerada uma das mais longas da história, expõe outra face da desigualdade: a luta pela água. No Ceará, populações indígenas e tradicionais do município de Caucaia, vizinho da capital Fortaleza, seguem firmes na defesa pela soberania hídrica e da preservação ambiental. Desde quinta-feira (7), eles estão mobilizados. Bloquearam a Estrada da Pedra e ocuparam um trecho do canteiro da obra que vai retirar água do Lagamar do Cauípe.

A população quer impedir a obra proposta pelo governo do estado por entender que o projeto vai retirar cerca de 200 litros de água por segundo da Lagoa para abastecer, em maior parte, indústrias e novos empreendimentos do Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Um segundo projeto do governo é perfurar dezenas de poços em regiões do município de São Gonçalo do Amarante, onde também há mobilização das comunidades.

“Essas obras trazem risco à manutenção da biodiversidade e passam por cima dos nossos direitos enquanto população tradicional. Não fomos consultados, como manda a Convenção 169, da OIT. Nosso povo se levanta com apoio de movimentos sociais que entendem que não somos beneficiados por essas obras, e sim prejudicados. São sucatas de termoelétricas que não querem mais em outros países e que aqui jogam eletricidade em redes que não nos beneficiam”, diz o lider indígena Roberto Ytaysaba Anacé. De acordo com ele, os 2.600 anacés que aguardam a demarcação das terras depois de sucessivas mudanças por diversos territórios para os quais foram sendo expulsos, são tutelados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), o que derruba um dos argumentos dos defensores das obras de que ali não existiriam índios. Os Anacés habitam a região desde o século 17.

“É uma agressão sem tamanho à natureza que preservamos com tanta dificuldade. E não defendemos apenas para o nosso povo, mas também para os descendentes daqueles que hoje defendem essas agressões”, afirma.

Movimento de moradores em defesa da água
As comunidades estão montando barracas e tendas nas extensões dos canteiros de obras e convidam mais pessoas para permanecer resistindo

Outro líder da resistência às obras, Paulo França critica a opção do governo em manter projetos “sem sustentabilidade e que invertem a prioridade do atendimento à água”. “Já demos diversas sugestões e projetos.Temos sol o ano inteiro e ventos, que favorecem outras matrizes energéticas, como solar e eólica, e a própria adoção de água de reúso quando um grande açude, o Castanhão, já está operando no volume morto. Diante da ameaça, as comunidades começam a entrar em conflito entre elas, com os movimentos sociais, quando avançam novos empreendimentos que geram poucos empregos e que ganham inclusive descontos na conta de água”, afirma.

Ação popular

França é um dos autores de uma ação popular protocolada nesta quarta-feira (6) no Tribunal de Justiça do Ceará para barrar as obras. No mesmo dia, um trabalhador das obras morreu em acidente de trabalho que está sendo investigado, A Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPE/CE), por meio do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, e a Defensoria Pública da União (DPU), por meio do Núcleo Regional de Direitos Humanos, também ajuizaram ação civil pública na segunda-feira (4), com pedido liminar de suspensão das obras de extração de água do aquífero Dunas/Cumbuco e do Lagamar do Cauipe.

A ação pede a anulação do licenciamento e a paralisação do empreendimento, que está tirando água de cerca de 27 comunidades da região para beneficiar o Complexo Industrial e Portuário do Pecém.

Além da extração de água das dunas do Pecém, o projeto inclui a perfuração de 42 poços na região, cada um deles com vazão estimada de até 170 litros por segundo. Para os defensores públicos, que querem a suspensão das obras até que sejam comprovados todos os estudos de impactos ambientais e sejam feitos os contatos com as comunidadeshá inconsistências no procedimento que culminou com a liberação de alvará para execução das referidas obras em uma Área de Proteção Ambiental (APA) do Lagamar do Cauípe. Criada em 1998, não teriam sido elaborados estudos de impacto ambiental, avaliação social das comunidades tradicionais que estão no trajeto, bem como a consulta prévia aos povos indígenas que tradicionalmente habitam e fazem uso da área do Lagamar do Cauípe.

O governo de Camilo Santana (PT) defende os projetos como alternativa para complementar o abastecimento dos distritos de Umarituba e Catuana, em Caucaia, a sede de São Gonçalo e indústrias do Complexo do Pecém. De acordo com nota enviada pela secretaria dos Recursos Hídricos, a medida só foi adotada após estudo realizado entre os anos de 2011 e 2014, que comprovaram a sustentabilidade da intervenção. “De acordo com o levantamento, no período de quadra chuvosa, a Lagoa sangra para o mar cerca de 20 mil litros de água por segundo. A ideia da obra é retirar apenas 200 litros por segundo enquanto a lagoa estiver vertendo, ou seja, 1% da vazão despejada no mar. Assim, a captação não interfere no nível da Lagoa, tampouco, representa qualquer risco ambiental”, afirma a nota.

Quanto à perfuração dos poços em áreas de dunas de São Gonçalo, o estado afirma ser uma intervenção sustentável. Neste caso, “a previsão é retirar apenas 10% da reserva renovável, volume restabelecido a cada inverno. Por outro lado, a implementação desses dois projetos agregará ações de preservação das áreas, que foram apresentadas à comunidade do entorno em reuniões, antes do início das obras”. 

A pasta sustenta ainda que entre os meses de maio e outubro foram promovidos cinco encontros entre gestores públicos e a população, em regiões centrais, e com oferta de transporte para facilitar o acesso e garantir a participação de representantes das 27 comunidades envolvidas.

39 bilhões de litros

O professor de Direito Ambiental João Alfredo Telles Melo, do Centro Universitário 7 de Setembro, de Fortaleza, confirma depoimento da liderança indígena quanto à falta de consulta, e entende que as comunidades serão prejudicadas com a retirada das águas do lagamar e dos poços.

“Além disso, a licença desobedeceu uma instrução normativa da própria Secretaria do Meio Ambiente, de consultar a Funai quando houver povos indígenas entre os afetados. E não foi feito estudo prévio de impacto ambiental, ouvindo a população em audiência pública, e apresentação de estudos alternativos. nada disso foi feito. Em tempo de calamidade, de crise hídrica como agora, a prioridade é o consumo humano, a dessedentação de animais. Ou seja, em uma época dessas, que tem gente vivendo com carro pipa no interior, e quando não pagam o carro pipa o povo fica com sede, a prioridade não pode ser as indústrias”, afirma.

Conforme o professor, a Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos (Cogerh) já concedeu licenças e outorgas para uso industrial. “Estamos na área do semiárido, com problemas de água. Você nunca poderia ter aqui indústrias como as siderúrgicas, que bebem 1.500 litros por segundo, ou termoelétricas, que consomem 800 litros por segundo. E agora vem uma refinaria para onde a gente não tem nem água. É um crime socioambiental. Vão secar o Lagamar. Para atender as indústrias o governo passa por cima da lei e do meio ambiente”, afirma.

Pelas contas de Telles, com essas outorgas e licenças serão retirados 371,11 litros por segundo, sendo 200 do Lagamar do Cauipe e 171 dos poços, 20 horas por dia, sete dias por semana, durante quatro anos. “A cada mês serão retirados perto de 1 bilhão de litros. E em quatro anos, quase 39 bilhões de litros para as indústrias ‘sedentas’ do Pecém”.

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