Sob a lente da história

Documentário na Alemanha: evidências de cumplicidade da Volks com a repressão

Filme narra em detalhes as evidências da colaboração e proximidade entre a montadora no Brasil e agentes da repressão. Um ex-diretor da empresa chega a negar a própria ditadura. Assista (legendado)

Reprodução

Volks criou divisão de segurança industrial na fábrica de São Bernardo do Campo cinco anos antes do golpe de 1964

São Paulo – Um documentário exibido no início da semana na TV pública alemã expõe, mais que a proximidade, a colaboração da Volkswagen do Brasil com a ditadura instalada a partir de 1964. O caso já é objeto de investigação, desde 2015, por parte do Ministério Público. O filme, de 44 minutos, traz mais detalhes sobre a participação da montadora, centrando sua narrativa no caso de um operário preso em 1972 dentro da fábrica de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Um diretor chega a negar a existência da própria ditadura, que só existiria para “esquerdistas”. Outras empresas podem passar por investigações, segundo pesquisadores que se dedicam a analisar o período sob esse viés.

Komplizen? (Cúmplices?) – A Volkswagen e a ditadura militar brasileira, filme de 44 minutos dirigido pelos jornalistas Stefanie Dodt e Thomas Aders, conta a história de Lúcio Bellentani, militante do PCB, preso e torturado na própria fábrica por policiais, com a anuência da empresa, conforme os relatos, e posteriormente encarcerado no Dops paulista durante oito meses.

Esse e outros episódios teriam chegado ao conhecimento da matriz, na Alemanha. A empresa afirma estar interessada esclarecer os fatos, mas o documentário aponta sinais de de resistência por parte da Volks. O caso também foi apresentado em programas de rádio e no jornal Süddeutsche Zeitung, sediado em Munique e um dos principais do país, com tiragem em torno de 400 mil exemplares diários.

Manfred Grieger, um historiador ligado à empresa, chegou a vir ao Brasil em 2015 para conversar com ex-funcionários e com o Ministério Público. Chegou a dar declarações no sentido de que a montadora deveria buscar uma reparação, desculpando-se pelo episódio e documentando sua colaboração com a ditadura. Mas o filme conta um desfecho surpreendente: Grieger saiu do grupo em outubro do ano passado. Segundo os jornalistas, a outra opção era fazer somente uma pesquisa autorizada.

Eles tentaram entrevistá-lo para o documentário, mas havia termos de confidencialidade na rescisão contratual. Segundo Hans-Gerd Bode, porta-voz da companhia, as circunstâncias da saída do historiador não são “relevantes para o público”.

RBA
Documentário exibido pela TV alemã fala em ‘subserviência’ de operários brasileiros

Cooperação regular

A Volks contratou, então, outro historiador, Christopher Kopper, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, para a finalidade específica de pesquisar a relação entre Volks e ditadura. “Aparentemente inofensivo” a princípio, como afirmam os documentaristas, Kopper também veio ao Brasil, no início deste ano, e em depoimento para o filme afirmou que “certamente” aconselharia a empresa a pedir desculpas públicas. 

“Existia uma cooperação regular entre a segurança industrial da Volkswagen e as forças policiais do regime”, afirma Kopper. A divisão de segurança industrial, vinculada à área de recursos humanos, foi criada pela empresa assim que se instalou no país. De 1969 a 1991, esse setor foi comandado pelo coronel do Exército Adhemar Rudge, que já prestou depoimento ao Ministério Público.

O documentário resgata imagens publicitárias e dos primeiros tempos da Volks no Brasil – a fábrica do ABC, a primeira fora da Alemanha, é de 1959. Traz uma cena rara, com o primeiro presidente da empresa aqui, Friedrich-Wilhelm Schultz Wenk, que, à mesa com outra pessoa, comenta: “É espantoso como os brasileiros são tão subservientes”.

Os jornalistas entrevistam Carl Hahn, ex-presidente do grupo Volkswagen. “A principal questão é: será que não há coisas mais importantes com que nos preocuparmos do que o passado no Brasil?”, questiona. Mais adiante, afirma, sobre o golpe: “Não me lembro de chorarmos pelo desaparecimento da democracia (…) Teríamos mudado alguma coisa?”.

“Nunca tivemos ditadura”

Segundo ele, “nós fabricamos carros, independentemente do governo”. Questões políticas ficariam restritas as pessoas do próprio país. “Mas não éramos comunistas, tenho de confessar”, acrescenta o executivo, hoje com 91 anos. “Acho que no Brasil podem olhar para essas coisas. Na Alemanha temos de olhar para o futuro.” Na parte final do documentário, diante de documentos levados pelos jornalistas, ele parece fazer uma ressalva: “Nunca nos passou pela cabeça que em nossas fábricas, direta ou indiretamente, os direitos humanos fossem prejudicados ou desrespeitados”.

Outro depoimento importante é o do Jacy Mendonça, ex-diretor de Recursos Humanos da Volks, onde entrou em 1969, na área jurídica. Conforme dizem os jornalistas responsáveis pelo documentário, ele tem sua própria narrativa histórica. “Nós nunca tivemos ditadura no Brasil”, afirma Jacy. “Quem se queixa de ditadura é quem sofreu as consequências. Eram os esquerdistas que queriam bagunçar o país.” 

Assim, o executivo, também ex-presidente da Anfavea, a associaçõ das montadoras, garante que mente quem fala sobre prisão dentro da fábrica. “De jeito nenhum”, reage. “Nunca entraram (policiais).”

Preso no chão da fábrica

O ferramenteiro Lúcio Antonio Bellentani, à época com 27 anos, conta que foi preso às 23h30, na linha de produção. Um agente encostou uma metralhadora em suas costas. Havia outros policiais, observados por seguranças da Volks. Começou a apanhar na fábrica mesmo: “Soco, tapa…” Foi levado em uma Veraneio azul até o Dops, que hoje abriga o Memorial da Resistência, onde passou pelo pau de arara e levou choques, entre outras torturas. O filme traz relatos de outros ex-funcionários, que afirmam também terem apanhado e permanecido em cárcere privado.

Fichado com o número 5.171, Bellentani acusa a empresa de ser, ainda que indiretamente, responsável por prisões e torturas.  “Não adianta ficar jogando debaixo do tapete (…) Não estou atrás de indenização financeira. O que eu quero é um posicionamento de reconhecimento da verdade.”

O porta-voz diz que se trata de um assunto considerado importante pela empresa. “Faz parte da nossa história e temos que saber tudo o que estiver ligado a nós, sobre o que e onde aconteceu”, afirma Hans-Gerd Bode, para quem “há percepções diferentes sobre o que aconteceu” e isso precisa ser comprovado por meio de fatos. Advogado da companhia no Brasil, Rogério Varga informa que a Volks já esteve no Ministério Público e “de forma proativa ofertou uma quantidade enorme de documentos para que os procuradores possam analisar”. 

O pesquisador Guaracy Mingardi, trabalhando para o MP, obteve documentos como boletins da Volks que foram parar no Dops, com nomes de pessoas que participaram de greves. Essas listas também eram compartilhadas com outras empresas, fazendo com que aquele trabalhador ficasse marcado e com dificuldade para arranjar outro emprego.

“Os documentos apresentados no filme e o texto da representação (no MP) são frutos dos trabalhos iniciados na Comissão Nacional da Verdade e continuados pelo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas) para o Fórum dos Trabalhadores e Trabalhadoras por Verdade, Justiça e Reparação”, lembra o responsável pelo projeto IIEP, Sebastião Neto. O inquérito no MP foi aberto a pedido de 10 centrais sindicais, juristas e ativistas. O caso Volks não é único, destaca. “Outras representações virão.” 

:: Clique aqui e assista ao documentário, com legendas em português

 

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